O que é a autonomia médica e como ela influencia nos tratamentos e na relação médico e paciente? O Saúde Debate ouviu representantes de três entidades médicas para esclarecer o assunto, ajudando tanto pacientes quanto profissionais.
O presidente em exercício do Sindicato dos Médicos no Estado do Paraná (Simepar), Marlus Volney de Morais, explica que a autonomia deve ser vista sob dois aspectos. O primeiro deles é a autonomia técnica, baseada no conhecimento e na ciência que o médico adquire na sua formação e aprimoramento durante a carreira. A segunda trata da autonomia “administrativa”, que corresponde aos vínculos que o médico tem em sua atividade diária.
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“Há confusão de terminologia em relação ao que se convencionou chamar profissional liberal em relação ao médico. Muita gente acha que ser liberal é não estar vinculado a nenhum emprego ou instituição e trabalhar por conta própria. Mas o conceito de profissional liberal está ligado à liberdade que ele tem, baseado na sua consciência, no seu conhecimento, de formatar prescrições e fazer as orientações que julgar adequadas no exercício da profissão”, declara.
De acordo com Morais, a formação técnica, desde os primórdios da Medicina, tem fundamento científico. “É ciência: começa por observação, formulação de hipóteses para explicar o fenômeno observado, testar hipótese e aplicar a hipótese testada. Quando o médico tem, dentro do seu conhecimento médico e científico, segurança para prescrever tanto medicamentos quanto orientações, ele precisa colocar essa ciência a serviço de quem está atendendo. É fundamental para o exercício digno da profissão médica, usar a base de conhecimento que tem e a experiência profissional para fazer as prescrições e orientações para os pacientes”, salienta.
O 1º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e integrante do Departamento de Fiscalização do Exercício Profissional do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Donizetti Giamberardino Filho, conta que a autonomia do médico deve estar em equilíbrio com a autonomia do paciente, que precisa de informações para exercer este seu direito e tomar a sua melhor decisão. “A autonomia do médico está no limite do benefício do outro. Ela só existe para ajudar o outro. Não existe uma autonomia irrestrita. Isto está fora de cogitação. A autonomia médica está prevista no nosso Código de Ética de uma forma bem clara”, afirma.
Segundo Giamberardino Filho, existe um conceito clássico relacionado à Medicina, chamado de Ciência e Arte. Nele, a ciência é a própria atualização do conhecimento. E a arte trata da relação médico – paciente. “É preciso essa interpessoalidade para gerar a confiança necessária. Isto é fundamental para sucesso de qualquer tratamento médico. Com essas bases, posso dizer que o médico vai exercer sua autonomia em benefício do doente. Tudo isto vale para uma questão individualizada”, cita.
O 1º vice-presidente do CFM cita como exemplo a variabilidade de drogas não reconhecidas, ou “off label”, para determinada situação. Para ele, isto deve estar definitivamente ligado a questões individuais, nas quais médico e seu paciente decidem sobre isto, sabendo dos limites, benefícios e riscos. Sobre o que classifica como “protocolo de consenso”, ou seja, ações e medidas que afetam mais pessoas, elas precisam estar calcadas em evidências científicas mais robustas. “Ao mesmo tempo em que o médico não deve tirar uma esperança, ele também não pode iludir. Essa é uma linha tênue”, frisa.
Sobre a pandemia e as discussões relacionadas à autonomia médica e possíveis tratamentos contra a Covid-19, Giamberardino Filho lembrou que todos estavam diante de uma doença com diagnóstico, mas sem conhecimento de como se comportaria e de um tratamento. “Neste momento surgem especulações e indagações na tentativa de buscar tratamentos usando tratamentos fora da bula. Isso pode ser feito, mas sob responsabilidade. Preciso olhar o paciente, ver aquela droga, verificar os efeitos colaterais, se existe artigo que coincide com o que estou pensando. E se for usar, falar com o paciente e ter o consentimento dele. Por que disso? Porque está colocando uma esperança de tratamento”, considera.
Ainda sobre a pandemia, Giamberardino Filho classifica que a questão da autonomia médica está bem colocada. Mas “algumas esperanças mostraram que não tinham efeito e precisavam cessar”. “Não há cabimento do médico usar o que não faz sentido, o que se esvazia. Se março de 2020 se pensou que alguns remédios funcionariam, e depois de um, dois meses viu que não funciona, não se usa mais. Isso está em um dos princípios da não maleficiência do nosso Código de Ética, que é uma norma muito maior do que qualquer parecer”, opina.
O presidente da Associação Médica do Paraná (AMP), Nerlan Tadeu Gonçalves de Carvalho, reiterou como os médicos estavam – e ainda estão – diante de uma doença nova, com diferentes manifestações, repercussões e evoluções. “E, diante de um fato novo, você deve se ajustar no decorrer do processo. E isso significa buscar alternativas de tratamento. E, quando não existe tratamento, fazer ‘tentativa e erro’. Logicamente, nunca chegaríamos ao consenso se o uso de determinada droga foi efetiva ou não porque existem vieses de pesquisa. Exemplo disto: como posso diante de um paciente, com a evolução de uma doença que não se conhece o desdobramento, deixar de oferecer a ele uma opção de tratamento? É uma relação médico e paciente”, diz.
Carvalho comenta que esta é uma situação para que, em comum acordo, médico e paciente tentam uma opção. “Mesmo que isso não signifique estar embasado cientificamente. Porque não tinha embasamento. Hoje se conhece um pouco mais. A polêmica é pela falta de dados científicos que permitam essa análise”, avalia.
Desejo do paciente x autonomia médica
O presidente em exercício do Simepar, Marlus Volney de Morais, ressalta que cada paciente tem uma experiência, um modo de vida, hábitos e crenças. E isso impacta em determinado tratamento, podendo existir “confronto de conhecimento e de experiências”.
Como uma boa iniciativa neste contexto, Morais cita um projeto norte-americano chamado Choosing Wisely, por meio do qual são divulgados dados técnicos para os médicos e informações em linguagem mais simples e acessível para os pacientes. O objetivo é fomentar as decisões compartilhadas.
Ainda nesta iniciativa, há a orientação para o paciente fazer cinco perguntas ao médico: “preciso mesmo fazer isso?”; “o que acontece se eu não fizer?”; “o que o senhor me propõe é seguro?”; “isto pode causar dano ou efeito colateral?”; e “qual o financiamento do tratamento?”.
“A autonomia passa a ser compartilhada. O médico conta, por exemplo, como encontrou vários trabalhos que mostram determinada situação e cita que, como médico, com a sua experiência, gostaria de prescrever determinado tratamento. O paciente faz os seus questionamentos e existe uma decisão em conjunto, estabelecendo uma relação”, comenta.
Segundo Morais, o compartilhamento da decisão também é fundamental para a sequência do atendimento e tratamento, especialmente se o paciente não quiser seguir ou aderir àquilo que foi recomendado pelo médico. “Tudo bem, mas o médico tem autonomia para dizer que não acompanha mais o tratamento daquele paciente porque não quer seguir a orientação”, explica.
O presidente em exercício do Simepar salienta que o médico deve agir conforme sua consciência e conhecimento, oferecendo o que existe de melhor, além de respeitar a autonomia do paciente.
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