Existem palavras-chave que podem definir a profissão de médico. Entre elas estão formação, atualização, dedicação. Mas outro termo pode dar dimensão sobre o desafio destes profissionais: transformação. Ser médico, hoje e no futuro, significa passar por uma transformação constante.
O presidente da Associação Médica do Paraná (AMP), Nerlan Tadeu Gonçalves de Carvalho, acompanha esta transformação não apenas pessoalmente, mas também por estar no comando de uma das principais entidades médicas do Estado. E, para isso, defende o associativismo como forma de garantir uma boa formação profissional – essencial para a evolução dos médicos, em seu entender – e saúde de qualidade para a população.
Formado em Medicina pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1976, Nerlan Carvalho é cirurgião vascular. Também foi presidente da regional da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV-PR) nas gestões 1988-1989, 1998-1999 e 2008-2009. Na Associação Médica do Paraná, foi tesoureiro, secretário, 1º vice-presidente e presidente interino. Em outubro de 2017, foi eleito presidente para o triênio até 2020 e reeleito para o triênio 2021-2023.
Nesta entrevista para a seção Paradigma do Saúde Debate, Carvalho comenta sobre o que é ser médico hoje, o que ele espera dos médicos no futuro e a importância do associativismo.
Saúde Debate – A pandemia trouxe à tona o valor do profissional de saúde. Na sua opinião, o que é ser médico hoje?
Nerlan Tadeu Gonçalves de Carvalho – Hoje vivemos um momento de transição do médico. Aquele médico que exerce sua profissão pautado exclusivamente em princípios científicos. Existe aquele médico mais flexível, que usa a ciência e também sua experiência pessoal nos casos ditos off label, ou seja, observação. E existe também aquele médico que exerce a profissão com vínculo de emprego, não necessariamente dedicado ao seu consultório, à sua atividade particular. O jovem mudou muito a sua característica, tanto no sentido de trabalho, de vínculo de emprego, como também de participação nas entidades médicas. Exemplo das gerações, como a Y e a Millenium. E ser médico significa atender o paciente como um todo. Não é segmentar a pessoa. Ser médico significa ouvir, compreender, examinar, dar atenção, orientar e estar atualizado. Isto é ser médico.
O senhor comentou sobre gerações e não tem como não lembrar de tecnologia. Estamos em um momento de muitas abordagens sobre inovação e tecnologia na saúde. A tecnologia é uma aliada ou pode gerar conflitos?
Sem dúvidas, a tecnologia é uma aliada. Mas não isenta uma boa anamnese, um correto exame físico, estabelecidos nas consultas. O vínculo da empatia traz segurança na relação médico-paciente. É necessário acolher. Muitas vezes, só ouvir já ajuda muito aquela pessoa que está fragilizada em determinado momento e busca no médico não apenas um tratamento, mas uma orientação “amiga”. É importante interpretar reações ou comportamentos durante a consulta, o modo como os familiares interagem, tudo faz parte do resultado final no tratamento.
Vou fazer um paralelo com a Medicina exercida em outros países, onde qualquer abordagem próxima do paciente pode ser interpretada como assédio. Exemplo disto são os Estados Unidos: o paciente chega em uma primeira consulta e sai com uma série de pedidos de exames. Este é o protocolo. Porém, essa aproximação com o paciente é fundamental porque você está olhando, interpretando e estabelecendo um vínculo de confiança. E voltamos no início da nossa conversa: este médico tem a obrigação de examinar o paciente. É fundamental. O exame complementar, como o nome diz, é complementar.
A pandemia fez com que os médicos e outros profissionais de saúde passassem por uma transformação. O que é possível projetar a partir de agora?
Os médicos e todos os demais profissionais da área da saúde foram, neste período, submetidos a um estresse maior por estar na linha de frente no atendimento aos pacientes com Covid-19. Além do aumento da carga de trabalho, estes profissionais também tinham a incerteza de estarem sendo contaminados ou de levarem a doença para seus familiares. Certamente, toda esta sobrecarga teve um reflexo no seu comportamento, no seu desgaste, no seu dia a dia. Neste momento, a classe médica e os profissionais de saúde foram testados ao seu limite. E vamos entender que a Covid-19, na minha visão, veio para ficar. Será mais um vírus que estará na nossa coleção todos os anos, assim como o da gripe e outras doenças sazonais. A Covid-19, em suas diversas variantes, será mais uma que vai implicar em vacinações periódicas.
A pandemia vai deixar alguma lição para as equipes médicas e para a própria população?
Serão deixadas lições, sim. A primeira lição, ao meu ver, é que o lockdown não adianta. Particularmente, acredito que o lockdown foi usado com o propósito de achatar a curva de transmissão e internações, permitindo administrar a ocupação dos leitos diante de uma doença nova, cuja evolução ainda não era conhecida. Nesta sequência, demonstrou claramente que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi a principal entidade que conseguiu suportar todo este processo. O SUS foi maravilhoso quanto à sua estrutura por aguentar a demanda.
A segunda foi que a pandemia mostrou a fragilidade dos leitos hospitalares devido à perda gradual nos recursos da Saúde. O que, nos desdobramentos, gerou o fechamento de leitos. Em torno de 30 mil leitos foram fechados entre 2008 e 2018 no país. É um número significativo. E por que isso aconteceu? Porque as verbas para a Saúde foram sendo reduzidas. O SUS aguentou a pancada da Covid-19. Por outro lado, o governo federal disponibilizou recursos para a saúde no enfrentamento da pandemia. Diante desse cenário, é necessário recuperar os investimentos e promover a reabertura dos leitos em favor da saúde da população.
A terceira, ajustamos condutas e aprendemos como agir diante de uma nova doença na abordagem dos pacientes internados, quanto à pronação, tempo de entubação, critérios de oxigenação, regulagem de aparelhos e medicamentos. Foi um aprendizado no decorrer da doença. Houve uma corrida no desenvolvimento da vacina. Porém, ainda não houve tempo para sabermos quanto dura a imunidade. Vale lembrar que, no início da pandemia, achavam que os idosos seriam as principais vítimas, e depois verificou-se que os jovens também eram atingidos e a permanência deles na UTI foi mais prolongada. Houve um aprendizado bastante grande.
E o médico do futuro? O que o senhor espera deste profissional?
Vamos pensar por gerações: Baby Boomers, X, Y e Millenium, que está por aí. Existe uma mudança no comportamento dos jovens, que se mostra menos comprometido, imediatista, quer resultados a curto prazo, não se envolve, quer ter vínculo de emprego com jornada de trabalho. Vemos com muita preocupação o comportamento destes jovens. Não só na classe médica, mas em todas as profissões. Como todo movimento de ida e volta, o jovem atual está muito envolvido na tecnologia, o que gera um enorme volume de informações, mas é necessário filtrá-las. O jovem quer conquistar as coisas com facilidade e a consequência é a não valorização da conquista. É claro que existem exceções, felizmente.
Nos preocupa, como entidade de classe, a formação do médico, que deve ser cuidadosa durante o curso, na residência médica e na permanente atualização. Nos preocupa a abertura de escolas de Medicina de modo indiscriminado e sem estrutura adequada. Uma escola de Medicina precisa contemplar corpo docente médico composto por professores, preceptores e residentes, laboratório, ambulatório e hospital-escola com leitos suficientes pelo número de alunos. Nos preocupa a invasão de pessoas ditas formadas em locais vizinhos ao nosso país e que desejam atuar sem ao menos prestar uma prova de avaliação de conhecimento. Nos preocupa a massificação de jovens médicos, que anualmente são lançados no mercado e ficam reféns de grandes grupos de operadoras de saúde, que estão verticalizando o atendimento e contratando através de Pessoa Jurídica, precarizando o vínculo de trabalho.
Espero que os jovens médicos busquem no associativismo o fortalecimento no enfrentamento e na solução dos problemas da classe médica.
E por que o associativismo é tão importante?
Por uma razão muito simples. Quando falamos em associativismo, temos que entender que essa união da classe tem como propósito defender a saúde da população. Não tem sentido de corporativismo. É claro que precisamos defender nosso espaço, como todos fazem. Mas o propósito é defender a população. Sempre batalhamos pela Medicina de Excelência e, para isso, a formação do médico é fundamental. Houve a abertura indiscriminada de escolas de Medicina, com valores elevados em suas mensalidades, vislumbrando o lucro por serem faculdades particulares. Poucas foram as vagas abertas em universidades públicas. A formação do médico tem que ser resolutiva. O médico bem formado é resolutivo e é isso o que nos interessa: formação de qualidade.
Clique aqui para conferir outras entrevistas da seção Paradigma do Saúde Debate