Efeitos da pandemia: consumo de bebidas alcoólicas em tempos de quarentena

Solidão, rotina completamente alterada, ansiedade, tédio, angústia, medo. O isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus é a “tempestade perfeita” para o desencadeamento de doenças psiquiátricas como crises de ansiedade, depressão ou dependência química. E o alcoolismo passou a ser um problema para o qual a comunidade médica está chamando a atenção.

Seja entre os pacientes que já tinham predisposição e têm no álcool uma fuga para os sentimentos ruins deste período, seja para a pessoa que, aos poucos vai alterando a rotina, incluindo a bebida no seu dia a dia e, quando percebe (se percebe) está já em um círculo vicioso, o consumo exagerado de álcool durante a pandemia chamou a atenção, até, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que emitiu orientação para que governos e empresas reduzam a venda de álcool durante a quarentena.

Além de ser um problema por si só, e de a ajuda profissional estar comprometida com o cancelamento de consultas eletivas em diversos hospitais e no sistema público de saúde para a concentração dos esforços no enfrentamento da Covid-19, o álcool ainda enfraquece o sistema imunológico, aumentando o risco de contágio da nova doença, aumenta o risco de acidentes, e a consequente ocupação de leitos hospitalares que poderiam ser destinados a casos de Covid-19 e, ainda, está diretamente relacionado ao aumento de casos de violência doméstica, lembra a OMS. O governo do Paraná editou um decreto no dia 19 de junho proibindo a venda e o consumo em espaços públicos de bebidas alcoólicas após as 22 horas.

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A pesquisa “ConVid – Pesquisa de Comportamento”, conduzida Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a UFMG e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontou que 18% da população brasileira aumentou seu nível de consumo de álcool, chegando ao patamar de ingestão diária de bebidas alcoólicas.

Boletim da Secretaria de Estado da Fazenda do Paraná sobre os impactos da pandemia na economia mostra que, enquanto as medidas de isolamento e a queda do poder aquisitivo da população causaram prejuízos irreparáveis a alguns setores da indústria e do comércio, a venda de bebidas alcoólicas se manteve praticamente nos mesmos patamares, chegando a registrar, até, aumento, nos meses de quarentena. Enquanto a venda de bebidas não alcoólicas caiu, em média 23% no período, registrando pico de retração de 39% na última semana de março, a venda de bebidas alcóolicas oscilou apenas 2% em todo o período, chegando a vender 13% a mais que antes da pandemia na última semana de abril.

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p class=”ql-align-center”>Dados da pesquisa ConVid, da Fiocruz. Clique aqui para ter acesso completo aos dados.

O Instituto Paranaense de Psiquiatria alerta que, se inicialmente, o álcool possui um efeito ansiolítico, diminuindo ansiedade e proporcionando uma sensação de prazer e relaxamento, no longo prazo, o consumo de álcool pode piorar quadros de ansiedade, especialmente em pessoas que possuem diagnóstico de algum transtorno deste tipo.

Falta de cuidado e violência

Para o psiquiatra Marco Antonio Bessa, especialista em dependência química o problema, no Brasil, passa pela facilidade de se consumir álcool, com demasiada oferta, propaganda irrestrita e preço baixo. “Cachaça é mais barata que leite, cerveja é mais barata que refrigerante. Qualquer pessoa pode comprar a quantidade de bebida que quiser a qualquer hora do dia, em qualquer lugar. É um incentivo muito grande ao consumo”, critica.

Ele alerta para o risco de desenvolvimento do alcoolismo em pessoas que, antes da pandemia, não apresentavam tendência à dependência. “O problema da bebida alcoólica não é só para quem já tem o problema com a dependência, porque esses já são graves e identificados. O problema são aquelas pessoas que não necessariamente tenha o problema da dependência, mas que por estar em casa, por perder a rotina, começam a consumir a bebida alcoólica fora do padrão, principalmente adolescentes, jovens, que começam tomando uma ou outra cerveja em horários que não costumavam tomar, depois já estão tomando todos os dias, em diferentes horários, na sequência, trocam a cerveja pelos destilados, aumentando a graduação alcóolica. Já estamos há três meses em isolamento. Três meses nesta rotina já pode estar criando uma dependência”, cita.

Além da diminuição da imunidade, o médico lembra que uma pessoa alcoolizada fica mais exposta ao coronavírus por negligenciar as medidas de distanciamento e de proteção pessoal. “Uma pessoa alcoolizada não vai se atentar para as ações preventivas, não vai se preocupar em higienizar as mãos a todo momento, por exemplo”.

Bessa lamenta que, com exceção do estudo da Fiocruz, não há dados mais claros sobre o aumento do alcoolismo no período de isolamento, mas que seu reflexo pode ser claramente visto no aumento de registros de casos de violência doméstica. “Esse índice de violência doméstica tem muita relação com o consumo de bebida alcoólica. Então, não é um risco só para a saúde de quem bebe, mas para toda a família”, diz.

O psiquiatra defende que, ao menos em “tempos difíceis”, como o de uma pandemia, as autoridades restrinjam a venda de bebidas alcoólicas, tanto nos horários quanto na quantidade que cada pessoa poderia comprar.

Para ele, uma pessoa que julga nunca ter tido problema com álcool precisa ficar atenta a alguns sinais de alerta nesta nova rotina imposta pelo isolamento. “Se aumentar a frequência, passando a beber mais dias que costumava beber em ‘tempos normais’, se aumentar a quantidade, se começar a beber em horários que não costumava, é preciso ficar atendo, rever os hábitos e, se for o caso, buscar ajuda”. Ele cita, ainda que a busca pelo álcool para aliviar o tédio ou a ansiedade do isolamento deve ser substituída por uma atividade de lazer. “Vai jogar videogame, montar um quebra-cabeça, assistir a um filme, ou mesmo participar de um grupo de discussão nas redes sociais”, diz.

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