A incorporação de novos profissionais, como as doulas, e a mudança nas escalas de trabalho na área obstétrica e neonatal do Hospital de Fornecedores de Cana (HFC) de Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, foram algumas das medidas que contribuíram para a redução do número de cesáreas (de 70% do total para 40%) e para a melhoria do atendimento às pacientes e aos recém-nascidos na unidade. As mudanças na rotina do hospital – incluindo a participação de doulas – fazem parte de um projeto de extensão da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) iniciado em setembro do ano passado.
De acordo com o coordenador do projeto, Humberto Hirakawa, a situação encontrada no hospital não divergia da realidade da assistência obstétrica brasileira como um todo – com uma postura mais intervencionista, troca de profissionais a cada 6 ou 12 horas, condutas não padronizadas e assistência centrada no médico. “A assistência precisa ser estruturada na relação médico-enfermeira-obstetriz permitindo uma atuação que une técnica e prática”, defende o docente da UFSCar, destacando que a consultoria teve início no ano passado, com o diagnóstico da situação.
Dessa forma, foi proposta à direção do hospital uma reorganização do trabalho com a incorporação de novos profissionais, como obstetrizes e doulas, e com a horizontalização do cuidado por meio de uma escala de horários que permitia que os mesmos profissionais estivessem todos os dias no hospital, ao menos durante seis horas. Para o professor, a presença de uma mesma equipe de profissionais transmite mais segurança para a gestante e a continuidade dos procedimentos destinados ao atendimento às pacientes. As intervenções começaram a ser feitas em fevereiro deste ano. E os resultados foram imediatos.
A enfermeira obstétrica Nara Laine Caetano foi uma das apoiadoras do projeto em Piracicaba. Ela relata que atuou ao lado dos profissionais do hospital para mudar o olhar sobre o processo do parto e da assistência à mulher, destacando a natureza fisiológica que, na maioria das vezes, necessita de suporte, e não de intervenções. “Oferecer uma dieta diferenciada à mulher em trabalho de parto e a adequação na ambiência dos quartos, criando condições mais favoráveis para o parto, são mais eficientes que intervenções feitas rotineiramente sem a devida comprovação de seu benefício”, destaca Nara.
Também foram adotadas medidas de padronização nas condutas de cuidado à gestante, aperfeiçoamento do sistema de classificação de risco e implantação de sistema de identificação precoce de pacientes com potencial de piora.
Além da redução do número de cesáreas, também foi registrada diminuição da taxa de ocupação dos leitos da UTI Neonatal (de 80% para 45%). “Esse dado é bem curioso, porque não houve nenhuma medida específica com relação a isso, é consequência direta da melhoria da assistência à mãe no trabalho de parto. O resultado benéfico é que diminuiu a taxa de ocupação, os bebês nasceram melhor. Houve menor taxa de complicações respiratórias relacionadas ao nascimento operatório, o que acaba por vezes encaminhando o bebê para a UTI neonatal”, explicou Hirakawa.
Outros resultados positivos foram a diminuição no número de episiotomias (incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto) e o aumento no número de partos com acompanhantes.
De acordo com o professor Hirakawa, o projeto de extensão está disponível gratuitamente aos interessados em implantá-los em hospitais e maternidades. “A intenção é que sirva como uma produção científica em que as pessoas possam usar como modelo, é gratuito e disponível para todos. Já a consultoria fica à disposição caso seja do interesse de cada instituição”, explicou o médico.
Quebra de paradigma
Para o diretor técnico do HFC, Miki Mochizuki, o trabalho desenvolvido pela UFSCar quebrou o paradigma do serviço hospitalar no município. “Houve uma imediata inversão do número de partos cirúrgicos em relação aos partos vaginais. Tradicionalmente, a grande maioria dos partos era por via cirúrgica e isso foi invertido logo nas primeiras semanas de atuação”, afirmou o diretor.
“Os números mostrados e os resultados foram um ponto de inflexão para o modelo de trabalho dos médicos mais antigos da casa, que entenderam que é possível instituir mudanças naquilo em que são experientes e que essas mudanças podem colaborar para produzir uma melhor assistência à população”, relata o médico.
Mochizuki aponta que as ações implementadas pela UFSCar terão continuidade. “Um projeto como esse necessita de supervisão e estudo a longo prazo para que seus efeitos sejam incorporados e passem a ser a rotina do serviço”, conclui.
Parto normal e cesárea
Tanto o professor da UFSCar quanto a enfermeira obstétrica destacam a importância de estimular o parto normal para as gestantes. Por ser um processo fisiológico do organismo, o parto normal tem recuperação mais rápida, com menor risco de hemorragias e outras complicações, facilita a amamentação e o cuidado da mãe com o bebê.
Já o procedimento cirúrgico pode aumentar o risco de infecções, hemorragias, fenômenos tromboembólicos, lesões na bexiga, problemas da anestesia, além de dificuldades na amamentação, devido ao período pós-operatório, podendo dificultar o estabelecimento de vínculo mãe-filho. A cesárea pode ainda causar problemas secundários como sepse, necessidades de novas cirurgias, reinternações e dificuldades de novas gestações. Para o bebê, a cesárea aumenta a chance de problemas pulmonares e até alterações na colonização bacteriana do trato intestinal.
No entanto, o médico explica que a cesárea é um procedimento necessário e deve ser indicado em casos em que o feto está com sinais de falta de oxigênio, quando o trabalho de parto não tem evolução adequada ou as condições maternas não permitam o parto normal.
Nova legislação
Em agosto deste ano, a Assembleia Legislativa de São Paulo decretou a Lei nº 17.137/2019 que garante à gestante a possibilidade de optar pela cesárea a partir da 39ª semana de gestação. A norma permite ainda que a gestante possa ser atendida pela analgesia, mesmo quando for escolhido o parto normal.
Para Hirakawa, a nova lei é inadequada. “A lei só está aumentando o tamanho do problema e não resolvendo. Ela dá isonomia para uma coisa ruim e não para uma coisa boa”, opina.
Atualmente, o estado de São Paulo realiza cerca de 60% de cesáreas entre Sistema Único de Saúde (SUS) e saúde suplementar, quando o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é que esse número não ultrapasse os 20%.
Ainda de acordo com o professor, o número de cesáreas vem crescendo, alavancados pelo SUS, já que nos convênios as taxas são historicamente elevadas. A taxa de mortalidade materna também tem crescido e alcança 50 casos a cada cem mil nascidos vivos, quando o ideal é que este número seja abaixo de 20.
“Isso mostra que a cesárea não oferece mais chances de vida para a mulher. Os índices comprovam que o aumento de procedimentos cirúrgicos pode estar associado ao crescimento das taxas de mortalidade das mães”, alerta o professor.
Para Nara Caetano, a assistência à gestante precisa ser qualificada, promover segurança e encorajamento à mulher sobre sua força e capacidade de conseguir realizar o parto normal. “Isso começa no pré-natal com as informações adequadas sobre via de parto, riscos, indicações reais de cada processo para que as mulheres cheguem à maternidade já informadas”, destaca a enfermeira obstétrica.
O Conselho Estadual de Saúde de São Paulo expediu uma recomendação, em outubro, pedindo a revogação completa da lei. O conselho pede que o texto seja reeditado e siga as orientações do Ministério da Saúde e da OMS.
“Melhorar a assistência, reorganizar os serviços de forma que a gestante seja o foco, disponibilizar todos os recursos para alívio da dor na hora do parto, oferecer as informações necessárias à decisão da mulher e acolhê-la durante o trabalho de parto são ações fundamentais que certamente culminarão na escolha pelo parto normal, oferecendo mais benefícios para mães e bebês”, destaca Hirakawa.