Foi publicada recentemente a Lei 14.737¹, (Diário Oficial da União – DOU – do último dia 28 de novembro de 2023), a qual altera a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990), para ampliar o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados. (Agência Senado)
Verifica-se pelo texto da referida lei que o seu principal objetivo está na estabilidade da norma de segurança da saúde (Lei n. 8080/1990), ampliando o rol de procedimentos para os quais a mulher tem direito a um acompanhante, independente da necessidade ou indicação de sedação, o que proporciona maior proteção a mulheres quando submetidas a procedimentos médicos, especialmente aqueles que requeiram a diminuição química da consciência.
A nova lei permite, ainda, uma importante extensão da proteção à mulher nesse contexto, uma vez que alcança instituições privadas e, também, unidades de saúde que estejam sob a direção de estados e municípios, os quais podem não estar submetidos às Portarias do Ministério da Saúde, em razão do federalismo sanitário, constitucionalmente previsto e que propicia a regionalização das ações e serviços de saúde no Brasil².
O reconhecimento da necessidade dessa proteção e a sua defesa, tendo em conta a recorrente incidência de desrespeito e violências a que mulheres foram submetidas historicamente e que se intensifica a cada ano é, sem dúvidas, muito importante.
Infelizmente, não há divulgação de levantamentos oficiais sobre o número de casos de violência contra a mulher em ambientes hospitalares, além de que tais casos nem sempre são relatados pelas vítimas.
Alguns números sobre a violência contra mulheres nos ambientes hospitalares foram divulgados extraoficialmente por levantamento inédito realizado pelo site Intercept, registrando-se que somente alguns estados brasileiros forneceram dados por intermédio das Secretárias de Segurança Pública, dados esses que confirmam 1.734 casos do tipo entre 2014 e 2019:
“São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. O número certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 18 unidades federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil.
As informações, pedidas às Secretarias de Segurança de 19 estados e do Distrito Federal, foram obtidas via lei de acesso à informação. Mas só Acre, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, São Paulo, Rondônia, Roraima, Tocantins e Rio de Janeiro enviaram as informações – este último, no entanto, não contabilizou os casos de 2019.
Os dados mais detalhados, enviados por São Paulo, revelam a violência aguda praticada nos serviços que deveriam zelar pela saúde e a integridade corporal das mulheres. Há 854 registros de estupro em 15 tipos de estabelecimento, incluindo asilos, hospitais psiquiátricos, consultórios médicos e dentários, laboratórios e postos de saúde. Mesmo os ambientes mais expostos se tornam cenário de abusos – há seis registros de estupro em recepções de hospitais – e a exploração de pessoas extremamente vulneráveis chega a ser macabra: foram registrados 16 estupros em CTIs e UTIs, além de quatro casos e uma violação sexual mediante fraude em centros cirúrgicos.” (Fonte: www.intercept.com.br)
Grifos nossos.
Vale destacar, foram 1239 casos de estupros e 495 casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor, além de que, tais informações são resultado do levantamento feito por alguns estados brasileiros, portanto, não temos dados integrais sobre essa violência.
Outro dado alarmante se refere aos locais onde ocorre a violência em questão, somente em São Paulo, em ambientes muito expostos, os estupros não deixam de acontecer, foram 16 estupros registrados em CTIs e UTIs.
Diante disso, é compreensível a necessidade urgente de ações no sentido de evitar que essa violência aconteça, bem como de ações positivas educativas e de informação para todos e, em especial, para mulheres, para que sejam orientadas quanto às formas de prevenção e, também, quanto às providências em caso de violência, sobre como denunciar e quais as formas seguras de tomá-las, para que se identifique os agressores, além de garantir a todas mais segurança.
Por fim, o que se espera é que os comandos da Lei 14.737/2023 sejam atendidos, mas que a defesa e proteção da integridade física e emocional de mulheres não se limite evitar pontualmente que a violência aconteça, mas que sejam implementadas outras ações que busquem a eliminação dessa violência e que haja reflexão e estímulo para mudanças necessárias, principalmente em relação à educação e formas de orientação e informação que alterem substancialmente a dinâmica social nesse sentido.
¹ PL 81/2022, de autoria do deputado federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), o qual foi relatado no Senado pela senadora Tereza Cristina (PP-MS). Fonte: Agência Senado
²O art. 198 da Constituição Federal prevê a integração das ações e serviços públicos de saúde em uma rede regionalizada e hierarquizada que constitui um sistema único e que se organiza a partir de algumas diretrizes, as quais estão dispostas nos incisos e parágrafos do referido artigo. O que implica, em síntese, a sua descentralização, com direção única em cada esfera do governo; atendimento integral e participação da comunidade. No tocante à descentralização, temos que o “SUS é constituído por uma rede regionalizada e hierarquizada que, preservada a direção única em cada esfera do governo, atua segundo os princípios da descentralização, regionalização e hierarquização dos serviços e ações de saúde. A atuação descentralizada e sob a forma de rede regionalizada de serviços – portanto, não concentrada – permite a adaptação das ações e dos serviços de saúde às necessidades locais, não somente quanto aos aspectos operacionais (…).” (Sarlet; Figueiredo, 2022, pág. 2021)
* Viviane Teles de Magalhães Araújo é advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO, com atuação no mercado corporativo nas áreas cível e trabalhista; Doutoranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Mestra em Direito (Direitos Fundamentais Coletivos e Difusos) pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP – Piracicaba/SP; Especialista em Direitos Humanos e Questão Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; MBA em Direito Empresarial pela FGV – Fundação Getúlio Vargas – Campinas/SP; Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campinas/SP (2008/2010). Autora do livro “Mulheres – Iguais na Diferença” (ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2018) e do artigo “A igualdade de direitos entre os gêneros e os limites impostos pelo mercado de trabalho à ascensão profissional das mulheres. (25 ed.Florianópolis: CONPEDI, 2016, v. , p. 327-342).
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