Curitiba para mim sempre foi a obra perfeita e inacabada (pela morte) de Jaime Lerner (prefeito de Curitiba por três vezes: 1971–75, 1979–84 e 1989–93 e governador do Paraná por duas vezes: 1995–1998 e 1999–2002), morto em 27 de maio de 2021. Do calçadão da XV às canaletas dos ônibus expressos até os magníficos parques da cidade, Curitiba era e é a cara de Jaime!
As floreiras do calçadão com suas flores de época embelezam a cidade como nunca se viu. Turistas na Linha Turismo se surpreendem com as belezas da cidade. Visitar cada um dos parques criados nas administrações de Jaime e em posteriores, enche o coração de alegria, contentamento e satisfação.
Andar no calçadão da XV entre aquelas lindas árvores e suas flores desabrochando em cores e cheiros, acompanhando os prédios históricos, desde o prédio da Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade, até o Palácio Avenida, antiga sede do falido Bamerindus – orgulho paranaense e hoje nas mãos do Bradesco – é uma rota interessante e bonita.
Sem falar no Largo da Ordem, centro histórico da cidade, com seus monumentos, igrejas, organizações municipais, museus e bares. Patrimônio histórico bem cuidado em que, aos domingos, uma feira vende de tudo para todos os gostos. Em suas ruas estreitas com calçamento de paralelepípedos, caminha-se sentindo as ondas do passado envolvendo nossas mentes.
Como falou um morador da Bahia para minha amiga Cristina Joly que visitava a ilha de Boipeba, ao referir-se a Curitiba com seus parques e planejamento urbano exemplar: “Curitiba é uma cidade de meio mundo”, provavelmente querendo dizer que a cidade era digna de pertencer ao primeiro mundo!
Mas calma lá! Todas essas andanças devem ser feitas à luz do dia, porque neste período as ruas, parques e praças do centro estão repletas de policiais militares e guardas municipais. A cada quadra pode-se observar o policiamento. Porém, após às 18 horas, o primeiro mundo curitibano acaba – as ruas são invadidas por dezenas, centenas de sem-teto, pedintes aparecem do nada em busca de trocados, algumas ruas abrigam prostitutas armadas de estiletes prontas a roubar míseros reais, carrinhos de todos os tipos e tamanhos dividem os locais de “lixo que não é lixo” (materiais recicláveis) com inúmeros cães nas calçadas, vielas, marquises e ruas. A tão bela Curitiba de Lerner veste uma roupagem assustadora! Já corri, sim, isso mesmo, corri de vários assédios voltando de restaurantes do Largo da Ordem ou das imediações do Teatro Guaíra. Um dos restaurantes que frequentava assiduamente na região do Teatro foi assaltado numa madrugada, tendo sido levados desde panelas, copos e talheres até claro, bebidas como vinhos e uísque.
Assustador! Por mais que relute em admitir, a bela Curitiba transformou-se num antro de achaques, assaltos e ameaças. Andar pelas ruas do Centro e imediações depois das 18 horas, quando a noite encobre tudo com suas sombras, é assustador. Em cada marquise daqueles prédios bonitos, um número incontável de pessoas dorme, à espreita do primeiro incauto que passe a fim de pedir dinheiro ou comida, de preferência um troco! Cenas do Inferno de Dante inundam minha mente … Em que lugar estou? E pensar que há 40, 30 anos atrás nada disso existia. Vivíamos numa pacata cidade! Hoje, até a Guarda Municipal armada, que não existia naquela época, exercita atos violentos contra os cidadãos sem o menor pudor. O Largo da Ordem transformou-se em praça de guerra nas noites dos finais de semana e nem os motoristas de aplicativos tem coragem de atender a um chamado na região. O que era pacato nos anos passados virou zona de guerra! A noite em Curitiba pode assustar muito, mas sempre lembrando: o bafafá está na região central e adjacências. Migremos, então, para o Batel, o Bigorrilho, o Juvevê, o Santa Felicidade! E aí vem a pergunta: o que é de uma cidade sem o seu Centro, o seu núcleo irradiador? Não sei! Não me perguntem! Sigam para o Batel e um daqueles shoppings esplendorosos …
Provavelmente Jaime Lerner não previu em seus projetos aquelas centenas de pedintes e sem-teto amontoados pelas ruas do Centro, porque com certeza projetaria um abrigo, “tipo assim”, o Museu do Olho, ou Estações Tubo, ou Faróis do Saber para abrigar a pobre, triste e faminta trupe dos deserdados da cidade! Pobre Lerner!
Sabemos que não é só Curitiba a sofrer com o aumento contumaz da pobreza. Podemos culpar a pandemia por tudo isso – o aumento exponencial do número de pobres que circulam diariamente pelas cidades do eterno país que nunca acorda do berço esplêndido. Seja em Curitiba, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, a pobreza esmaga a maior parte da população. A inflação acelerada, a falta de emprego, a escassez de opções, o salário-mínimo aviltante, os governos e legisladores inaptos e corruptos, a justiça morosa, a discriminação de negros, tudo isso reflete na falta de esperança por dias com empregos e salários melhores ou o prato de comida na mesa. Não há salvador da pátria que tenha boa vontade e moral para iniciar um processo de endireitar o gigante adormecido. Nem Moro (aquele da orgulhosa e soberba República de Curitiba) conseguirá tal façanha!
Enquanto isso, e sem querer ser pessimista, aguardamos pelo Messias que salvará esta nação da “débâcle”, das profundezas do poço sem fim do qual não conseguimos sair, do empobrecimento cada vez maior da população, pela falta de assistência aos desamparados, pela péssima qualidade do ensino em todos os níveis, enfim, de tantas e tantas situações de desastre que estamos sempre prestes a cair. Abro aspas ao atendimento do SUS – Sistema Único de Saúde, digno de “meio mundo” se emendas parlamentares não ceifassem vidas com a apropriação indevida de recursos para a saúde. Triste país, triste futuro! Eis a foto real da republiqueta de bananas, abandonada ao Deus dará, desamparada de seus melhores aliados no mundo devido ao péssimo comportamento do presidente atual, perdida em seu rumo pelas falcatruas eleitoreiras, enredada em escândalos públicos e privados … que futuro nos reserva este presente desgraçado?
E Curitiba? Pobre Jaime Lerner, nunca imaginaria que “sua” cidade sofreria desta maneira com a pobreza assolando milhares de habitantes, que não veem alternativa a não ser atirar-se debaixo das marquises a espera de um trocado e sabe-se lá quem dará este mísero trocado, já que primeiro corremos pensando ser um assalto!
(*) A propósito, “Eu conheço bem o jeito dessa cidade“ é a primeira linha da canção Piá Curitibano de autoria de Paulo Chaves, tocada nos anos 1980 na abertura do canal 2, hoje Band TV. A música encontra-se em https://www.youtube.com/watch?v=3kxxGT0Zy-8 e na Amazon.
*Gilmar Rosa é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Positivo e História – Memória e Imagem pela Federal do Paraná. Participou na execução de um dos mais importantes projetos de implantação de APS no estado do Paraná em 2014. Atualmente, busca um lugar ao sol que tenha águas cálidas e agradáveis durante todo o ano.
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