Ruas cheias

Uma sensação de impotência sobre o que fazer para auxiliar na diminuição de tantas pessoas que vivem nas ruas de sul a norte deste imenso país

Ruas cheias - coluna Gilmar Rosa
Praia de Manaíra em João Pessoa-PB. Créditos: Acervo Gilmar Rosa.

Alguns dias atrás chamei o Uber.  Ao entrar no veículo, achei o motorista um tanto grosso por não responder a minha saudação! Vai lá, pode ser que tenha saudado o moço na saudação paranaense, só que estou na Paraíba! Sabe-se lá se entendeu ou não! De qualquer forma, já estava pronto para marcar três estrelas na avaliação dele. Daí, como diria a Bozena (e outros tantos milhões de paranaenses), o moço começou a desatar uma conversa “tipo assim” (1), inteligente, ao passar pelas ruas centrais de “Jampa” (2) em direção ao meu destino.

Mas o que tanto falava o aparentemente jovem motorista? A princípio teceu vários comentários sobre a situação das pessoas que vivem nas ruas, tais como abandono da família, uso de drogas, álcool, fumo, falta de apoio, falta de alguém para servir como amparo e até mesmo por vontade de estar na rua sem compromissos. Não havia como negar que o moço estava coberto de razão ao enumerar a sanha de tantos e tantos brasileiros que vivem nas ruas de sul a norte deste imenso país. Seus comentários sobre a situação eram bastante contundentes e articulados. Nem me veio a cabeça perguntar o que ele havia estudado, pensei que não seria uma boa pergunta ante tanto falatório sobre as condições dessa gente que vive nas ruas. E, graças a Deus, nenhuma conotação política direita versus esquerda em suas palavras, somente a constatação do fato.

Não faz um ano que tenho vivido em João Pessoa. Nestes meses quentes e tórridos pude perceber que as assertivas de meu motorista do Uber eram verdadeiras. Isto porque você constata in loco, ao se dirigir para as praias, por exemplo, indo a Tambaú, uma das mais famosas praias pessoenses. Nesta época de temporada, as areias estão coalhadas de gentes várias. Entretanto, nunca deixei de observar que no entorno de Tambaú as calçadas estão repletas de sem-teto ou seja lá o que for aquela gente toda. Reunidos em grupos aqui e ali, com seus indefectíveis cães, eles se espalham em vários pontos.

Outra constatação que me deixou um pouco incomodado diz respeito ao acesso ao banco em que tenho conta corrente. A agência mais próxima de onde resido localiza-se em um prédio cujas marquises se projetam para a calçada, tornando-se um excelente abrigo contra as intempéries. E é impressionante o número de pessoas menos favorecidas que se aboletam em toda a extensão da calçada sob as marquises. Para dizer a verdade, nunca tive coragem de entrar naquela agência com receio de ser abordado por um dos sem-teto e não saber como reagir! Medo?

Se o Centro da cidade está repleto de sem-teto e a orla também, me pergunto sobre o restante dos bairros da cidade, que não conheço, como seria a situação?

Pelo último censo do IBGE (2022), a população de Curitiba é de 1.871.789 pessoas e a de João Pessoa é de 889.618. Significa que Curitiba é 2,10 vezes maior que João Pessoa! Enorme, não? Se fiquei tocado pelo número de sem-teto em Jampa, o que dizer de Curitiba? Qualquer um já passou pela praça Rui Barbosa em qualquer horário do dia ou da noite e só não percebeu as dezenas (diria até centenas) de pessoas que vivem nos canteiros da praça, só se fosse cego. É incrível a quantidade de gente lá naquela praça com seus cães a tiracolo. Sabe-se que a Prefeitura tenta levá-los aos abrigos, mas a maioria não aceita sair da rua. Ande pela Marechal Deodoro, XV de Novembro, Largo da Ordem, Praça Carlos Gomes, Praça Osório, Praça Generoso Marques e tantas outras ruas e praças da cidade, para sentir o coração dos sem-teto, desgarrados e menos afortunados pulsando fortemente em cada esquina! Uma tristeza, uma decepção para uma cidade que quer ser conhecida como de primeiro mundo! Onde erramos? Em que ponto deixamos para trás tantas pessoas sem auxílio?

Na década de 1990 frequentei igreja evangélica em Curitiba. Numa determinada noite, resolveu-se ir para as ruas evangelizar os esquecidos nas sarjetas. Foi uma experiência única. Apesar de ter tido contato direto apenas com um morador de rua, sentado na calçada, ali pelas imediações da Jaime Reis, próximo ao Largo da Ordem, encontramos um senhor, barba por fazer, roupas rotas, fala calma, a quem oferecemos um sanduíche e uma palavra bíblica de conforto e esperança (eu não, pois só estava a acompanhar).

Nossa maior surpresa (estávamos em uma equipe de 4 ou 5 pessoas) foi saber que aquele homem estava nas ruas já fazia algum tempo, abandonado pela família que não conseguira debelar o vício do álcool e não queriam mais recebê-lo em casa. Pois aquele homem tinha sido engenheiro civil e trabalhado nessa área por vários anos! Como uma pessoa preparada e estudada por tanto tempo acabara naquela situação? O vício fez com que a família o abandonasse e ele não conseguiu se reerguer, a não ser submergir nas calçadas e sarjetas da bela e verde Curitiba.

Quantos assim em Curitiba, em João Pessoa, em São Paulo, Porto Alegre, Brasília? Como será que poderíamos ajudar? Como será que poderíamos dar réstias de esperança? Como será que nosso país sobreviverá ante tanto desamparo?

(1) “Tipo assim, vamu combiná, ninguém merece, tá ligado, manu?” Algumas expressões que ouvi as gentes de meu convívio pronunciarem e que não queriam dizer absolutamente nada! “Tipo assim” é primordial quando não se quer dizer nada! A variação menor é somente “tipo”, repetida 7 vezes a cada 5 palavras pronunciadas.
(2) Jampa para os íntimos é João Pessoa, capital da Paraíba.

*Gilmar Rosa é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Positivo e História – Memória e Imagem pela Federal do Paraná. Participou na execução de um dos mais importantes projetos de implantação de APS no estado do Paraná em 2014. Atualmente, busca um lugar ao sol que tenha águas cálidas e agradáveis durante todo o ano.

Acompanhe mais colunas de Gilmar Rosa clicando aqui

Clique aqui para conferir os colunistas do Saúde Debate