Os dados das últimas semanas mostram que o Brasil está em uma curva ascendente no número de casos e de mortes causadas pela Covid-19, a infecção desencadeada pelo novo coronavírus. As atenções internacionais estão voltadas ao país, que é considerado a “bola da vez” da pandemia. Mas por que o Brasil é o epicentro atual da pandemia de Covid-19?
A médica infectologista Marta Fragoso, do Hospital Vita, de Curitiba (PR), explica que o Brasil está sendo considerado o novo epicentro da pandemia de Covid-19 a partir de uma análise epidemiológica. “Essa análise é feita em cima do total de casos e a população exposta; pelo número de casos novos, também relacionado com a população exposta; e pelo número de óbitos. A relação entre esses três indicadores torna um país ou um continente, por exemplo, um epicentro. Principalmente, o número de casos novos, que faz com que essa análise possa classificar um país como epicentro ou não”, afirma.
O médico infectologista Moacir Pires Ramos, que também atua em Curitiba, complementa dizendo que o Brasil entra em uma fase de crescimento de casos de Covid-19, enquanto países da Europa e da Ásia estão em uma curva descendente. Este, entre outros motivos, faz com que o território brasileiro seja considerado um foco transmissor.
Moacir Pires Ramos (Foto: SMCS / Prefeitura de Curitiba)
“Cresceu o número de casos e está crescendo muito. Como o Brasil é um país continental, com uma população muito maior do que outros países, começa ter um número de casos muito grande. Essa seria a primeira explicação para considerar o Brasil o atual epicentro da pandemia de Covid-19. A segunda é a concentração de casos pela população. E nesse quesito também estamos em uma posição maior do que muitos países que já estiveram em uma situação crítica”, esclarece.
“Como outros países já começaram a diminuir o número de diagnósticos e de óbitos diários, no que se chama de curva descendente, e estamos francamente em uma curva ascendente, o impacto de possíveis transmissões passa a ter menos importância na Europa e na Ásia do que está tendo aqui para nós. Então, somos epicentro ou um foco disseminador”, indica Ramos.
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Um dos motivos para a curva ascendente no país é a flexibilização das medidas de isolamento que vinham sendo adotadas em várias regiões do Brasil na tentativa de conter a transmissão do novo coronavírus. E isto aconteceu em um momento de escalada dos registros de casos e da proximidade do chamado pico da epidemia.
De acordo com Ramos, o isolamento social foi implantado para “ganhar tempo” em diferentes frentes, como uma maior organização do serviço de saúde; para chegar o mais perto possível de uma vacina contra a Covid-19 ou um tratamento eficaz contra a doença; e ainda sair do período de maior transmissão de vírus de doenças respiratórias, que é o inverno, no caso da região Sul do Brasil. “Mas nenhum desses critérios está sendo alcançado adequadamente para flexibilizar as medidas”, avalia.
O médico infectologista afirma que o isolamento social é uma medida dura, com muitos impactos. Ele cita que a Organização Mundial da Saúde (OMS), quando traz informações para flexibilização e parâmetros, considera que a população não resiste muito tempo ao isolamento.
Esta pode ser uma das explicações para o que está acontecendo atualmente no país, com o relaxamento de várias medidas adotadas inicialmente na tentativa de controle da pandemia. “A população não entende muito bem essa questão do relaxamento relativo. A maioria das pessoas que está em casa há algum tempo entende um ‘agora pode’ para o relaxamento relativo. E não é isso. Preocupa muito estarmos flexibilizando em uma ascensão da curva e em um período do ano em que as doenças respiratórias são mais frequentes”, considera Ramos.
Para a médica Marta Fragoso, a situação é difícil e não tende a melhorar. “Nunca dissemos que isso seria fácil de administrar. Até tivemos tempo de melhorar as condições do sistema de saúde, mas isso é muito difícil em um país como o nosso. O Sistema Único de Saúde perdeu bilhões de reais de recursos nos últimos anos. Tivemos três ministros nos últimos três meses. E ainda não é uma escolha técnica. Já não tinha gestão adequada; agora, então, nem dados”, opina.
Médica Marta Fragoso (Foto: Rafael Danielewicz)
E onde o Brasil errou para ser o epicentro atual da pandemia de Covid-19?
A especialista salienta, desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, houve problemas de gestão. A falta de alinhamento impactou diretamente as ações e o resultado do combate ao novo coronavírus. “Deveria haver uma linha única para enfrentar a epidemia, no país todo, com as mesmas diretrizes. E isso não está acontecendo. São ações de estados e municípios. E um conflito porque a pandemia foi politizada”, analisa. “Desde o início, tivemos situações inadequadas de gestão. Enquanto tínhamos o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, havia pelo menos um crédito maior. Mas, agora, estamos totalmente desacreditados. Minha visão é bem pessimista”, classifica.
Quando o coronavírus ainda atingia duramente a Ásia e a Europa, muito se falava que o Brasil deveria aprender as lições antes que ele chegasse por aqui. Então, o país não aprendeu? “Aprendemos, mas a lição não foi feita como deveria ter sido feita. E também por ser uma doença nova, nós também, os técnicos, infectologistas, epidemiologistas, cometemos alguns erros. Demorou-se para admitir uso da máscara de forma coletiva e sustentada. Agora, a gente sabe e muito bem que é uma forma de controle. Demorou-se para avaliar os pacientes, quando se falava em ir para o hospital se tivesse insuficiência respiratória ou problemas respiratórios, e isso não é o adequado. O adequado é que se tenha uma avaliação diária das condições desse paciente. Muitos poderão até voltar para suas atividades, sendo liberados”, pontua Marta, ainda citando a preferência de uma melhor utilização das unidades básicas de saúde, deixando apenas o atendimento terciário para aqueles que precisam de supervisão de respiradores.
Adesão da população
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p class=”ql-align-center”>Exemplo de como não usar a máscara de proteção (Foto: Pixabay)
Marta Fragoso chama atenção para a importância da contribuição dos brasileiros no controle da pandemia e para que o Brasil deixe de ser o atual epicentro da pandemia de Covid-19. De acordo com ela, fala-se muito de respiradores, mas é necessário que o cidadão pense no seu papel. “Embora tenha todo esse conflito de gestão, muitos não acreditando que o vírus exista, é necessário convencer o cidadão de que ele precisa manter o uso da máscara, higienizar as mãos e o distanciamento social. O cidadão que terá que fazer essa gestão”, salienta.
O médico infectologista Moacir Pires Ramos vai além. Segundo o especialista, a informação é comprovadamente essencial em um momento como este. No entanto, apenas a informação não é suficiente para fazer com que a adesão por parte da população às medidas colocadas pelas autoridades de saúde e especialistas seja alta. Além das pessoas não resistirem a um isolamento longo e das questões econômicas impostas em função disto, um comportamento característico de uma pandemia é a tentativa de verificar como está a sua “percepção local”. De maneira geral, enquanto a população não se sentir ameaçada, ela ainda resiste às medidas.
“No caso da Covid-19, 85% dos casos são leves. Enquanto a população não está vendo os doentes, enquanto a população percebe assim, ela fica mais flexível para voltar (a um ‘normal’). Quando vê pessoas doentes próximas, ela se assusta e volta”, aponta Ramos. De acordo com ele, é isto o que pode acontecer se novas medidas de isolamento forem impostas – e até mesmo mais rígidas, como o caso do lockdown. “Embora exista a possibilidade científica de intensificar as medidas de isolamento, afrouxar e monitorar os dados e, se voltar a crescer, identificar o que está acontecendo e tomar novas medidas, você por outro lado tem a percepção da população. Isso é um comportamento habitual da epidemia. A adesão da população não vem só da informação. Ela é uma parte essencial, mas não é só isso que vai fazer a população aderir. A população também tem a sua percepção do que está acontecendo”, expõe.