Por que as pessoas têm dificuldades em cumprir novas regras que vieram com a pandemia?

A pandemia de Covid-19 veio “de um dia para o outro” e impôs a todos novas regras, novos hábitos e a necessidade de adaptação. Em um momento de alta tensão, como este, cada um pode reagir de forma diferente. Fato é que toda a população foi afetada por ela. No entanto, muitas pessoas não entendem porque, para alguns, é tão difícil essa nova realidade e surge a pergunta: Por que as pessoas têm dificuldades em cumprir novas regras que vieram com a pandemia?

Esse momento de muito estresse também revela muitas outras faces dos seres humanos em diferentes graus e escalas, principalmente sobre individualismo, compaixão, empatia e as relações interpessoais.

Nessa entrevista, a psicóloga Marjorie Rodrigues Wanderley, da Estácio Curitiba, aborda esses aspectos e comenta que esse momento de pandemia pode pode ser caracterizado como um período de anomia, no qual uma crise afeta diversos âmbitos sociais. Neste tipo de fenômeno, as regras, normas, valores e papéis empregados previamente não têm mais uma função, e as pessoas precisam reestruturar novamente seus modos de vida, processo que acarreta em diversas mudanças individuais e coletivas.

Confira:

Por que as pessoas têm dificuldades em cumprir novas regras que vieram com a pandemia? Por que parte delas tem dificuldade em cumprir medidas como uso de máscaras, higienização e distanciamento social? Seria falta de informação, educação ou uma medo em enfrentar o momento?

Marjorie Rodrigues Wanderley: De modo geral, as pessoas não estão acostumadas a viver na lógica da prevenção. Essa dificuldade não se manifesta somente no que diz respeito aos cuidados com saúde, mas em todos os aspectos da vida. Podemos analisar os exemplos da quantidade de campanhas que são necessárias em uma tentativa de conscientização quanto aos perigos de dirigir embriagado, a importância dos métodos contraceptivos, o impacto de uma boa alimentação, dentre outros. Com o coronavírus não é diferente. Desenvolver qualquer novo hábito é um processo muito difícil, e se torna ainda mais custoso quando esse hábito precisa ser desenvolvido de forma imediata e compulsória.

Soma-se a essa dificuldade a questão de esses hábitos do uso de máscara, higienização e distanciamento como necessários para a prevenção de uma doença, ou seja, para que algo hipotético não aconteça, ao invés de curar algo que já está presente. A instauração de um novo hábito se torna mais fácil quando a pessoa tem acesso direto aos benefícios daquela ação ou com os prejuízos caso aquela ação não seja cumprida. Nesse sentido, é mais provável que pessoas que já tenham alguém próximo diagnosticado com Covid-19, ou tenha perdido alguém conhecido, consigam aderir a essas mudanças de rotina, comparado com alguém para quem essa realidade ainda é distante. Por conta disso, por mais que as pessoas tenham informação sobre o panorama geral do coronavírus, é somente quando a situação é sentida de forma mais direta que as pessoas tendem a desenvolver esses hábitos e perceber a importância de atitudes preventivas.

Existe uma reclamação de que essas pessoas, neste momento, estão com uma pré-disposição em olhar somente para seus direitos. Contudo, não gostam de ser questionadas sobre a adesão a essas medidas. Por que isso ocorre?

Marjorie: A pandemia do coronavírus trouxe consigo uma série de debates que refletem a opinião das pessoas enquanto seres sociais e políticos. Quando as pessoas expõem suas revoltas quanto a seus direitos, estão expondo também suas crenças sobre o que é ser um cidadão, o que é estar sujeito ao controle do estado, bem como qual o limite entre deveres e direitos individuais e coletivos. O máximo de direito que podemos pensar enquanto cidadão é o direito de ir e vir, de sair de nossas casas e circular pela cidade, e este direito está ameaçado por conta do aumento de casos de Covid-19.

É muito difícil para o ser humano, assim como para qualquer outro animal, lidar com essa perda de liberdade. Por conta disso, as pessoas procuram quais os direitos que sobraram, então, já que estão tendo direitos essenciais, como o da liberdade, limitados por um bem maior. Nessa procura, é possível que as pessoas demonstrem uma dificuldade em cumprir com seus deveres de cidadãos, porque esperam uma relação de troca, na qual seus deveres serão recompensados pelos seus direitos, relação que não está em equilíbrio no cenário atual e só é possível aceitar essa perda de direitos a partir do pensamento coletivo.

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Nesta pandemia, como a comunicação instantânea, por meio das redes sociais, tem influenciado o comportamento das pessoas? Uma característica desse momento é a fake news, muito compartilhada justamente pelas redes sociais. Qual impacto delas e a melhor saída para fugir disto?

Marjorie: Justamente, uma das principais características dessa pandemia é o compartilhamento da situação pelo mundo inteiro, o que é intensificado por conta do desenvolvimento das tecnologias. Com esse desenvolvimento, as informações circulam com uma velocidade muito maior, e as informações são compartilhadas de forma instantânea. Especialmente nesse momento, e no que diz respeito ao coronavírus, existe uma quantidade imensa de informações a cada segundo. Com esse bombardeio de dados, números e opiniões, é impossível manter-se informado de tudo o que acontece, o que gera uma sensação de falta de controle, de estar perdendo alguma coisa importante.

Infelizmente, essa velocidade atrelada à necessidade das pessoas de manterem-se informadas sobre tudo o que acontece acaba aumentando a propagação das fake news. O compartilhamento de notícias sem que haja a verificação da veracidade, ou muitas vezes sem que haja a leitura da notícia, pode causar muitos prejuízos porque o que as pessoas recebem de informação se transforma em suas ações, e essas ações podem ser especialmente prejudiciais no momento atual, caso sejam fundamentadas em notícias falsas.

Além disso, nós vivemos em uma cultura que não incentiva o hábito da leitura por meio da educação formal, e que teve a leitura em grande parte substituída pelo uso de tecnologias. O ato de uma pessoa compartilhar uma notícia falsa sem a verificação pode estar atrelado a diversos motivos, dentre eles, a facilidade de compartilhar algo clicando em apenas um botão, ou a necessidade de manter uma visibilidade online por meio da propagação de informações. Além disso, pode advir de uma atitude desesperada de tentar conscientizar outras pessoas por meio da divulgação de notícias falsas que sejam catastróficas, ou até mesmo o oposto – a esperança sentida ao compartilhar uma notícia falsa de alguma cura milagrosa, ou de minimização da gravidade da situação.

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p class=”ql-align-center”>Comunicação pelas redes sociais e mais tempo na internet se tornaram realidade na pandemia (Foto: Pixabay)

Por que existe tantas pessoas que negam o próprio vírus e a pandemia? Seria o medo de encarar o novo ou forma de chamar a atenção? Quais as consequências da criação de uma cultura negacionista em situações importantes e que atingem a todos?

Marjorie: É importante, antes de tudo, apontar que a negligência dos fatos científico no cenário atual pode estar relacionada com uma insuportabilidade do que os cientistas e pesquisadores têm a nos dizer, porque o cenário é realmente muito difícil de aceitar, então como mecanismo de defesa algumas pessoas procuram acreditar em opiniões (e não dados) que sejam mais confortáveis, como o que de essa doença não é tão grave, por exemplo. O fato é que a chegada súbita de uma pandemia foi sentida de uma forma muito alarmante, e grande parte das pessoas sentiu um grande desespero com a possibilidade de adoecer, perder seus empregos ou perder alguém querido, e grande parte das pessoas partiu para o oposto – o de negar a gravidade da situação.

Esse negacionismo pode ocorrer por conta de falta de informação, o que pode ser por uma dificuldade de acesso às tecnologias disponíveis, ou até mesmo a informação baseada em notícias falsas. Além disso, pode ser que crenças pessoais, principalmente as religiosas, se sobreponham aos dados científicos recebidos, o que também pode levar a pessoa a negar a realidade. Por fim, assim como citado previamente, é possível que esta negação ocorra por conta de mecanismos psicológicos de defesa, por conta da dificuldade em conceber a realidade desta pandemia, e este fenômeno não é escolhido pela pessoa para que ela se proteja, mas simplesmente acontece porque nossa cognição nos defende de diversas formas do que é insuportável para nossa vida, e uma dessas formas pode ser a negação da realidade.

E quando o foco é encontrar culpados?

Marjorie: A situação atual é difícil de conceber não só por conta dos perigos dessa doença e da evolução da pandemia, mas também porque estamos lidando com um vilão invisível, sem causas e sem cura. Por conta dessa dificuldade, as pessoas podem sentir necessidade de encontrar culpados, porque nós estamos acostumados a pensar tudo na lógica da causa e efeito, encontrando alívio quando se tem alguém ou algo para culpar. Há, portanto, uma dificuldade muito grande em lidar com o que não tem uma causa, e a sensação que fica é a de um vazio que não tem como ser preenchido. O problema dessa busca por culpados é que a pandemia tem exacerbado as manifestações de xenofobia ao redor do mundo, principalmente por meio do preconceito com os povos orientais, o que é manifestado por meio de julgamentos preconceituosos, estereótipos e reprodução de discursos de ódio.

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Mas existem outras consequências desta pandemia. Neste momento, muitas outras pessoas também sentem a necessidade de ajudar de alguma forma. Mas não sabem como iniciar uma ação. Qual a medida certa? Isso tem a ver com um sentimento de culpa, ou seria empatia?

Marjorie: Outro fenômeno que surgiu junto com a pandemia, em especial no nosso país, foi que a nossa situação de desigualdade social foi escancarada, sendo praticamente impossível não enxergar como poucas pessoas têm tanto, e tantas pessoas têm tão pouco. Por mais que muitas pessoas já reconhecessem a extensão da nossa desigualdade social, ao terem que voltar-se para dentro de suas casas (e para dentro de si mesmos), puderam olham para o cenário mais amplo, olhar ao redor, e perceber seus privilégios. Ter uma casa para ficar, poder desempenhar uma boa higiene, conseguir ter o que comer ou até mesmo ter um emprego, todas essas coisas que eram vistas como naturais, ou até mesmo como méritos, passam a ser vistas como privilégio a partir do reconhecimento de que muitas pessoas não têm nem uma parcela disso tudo.

Além disso, o coronavírus causa uma doença que não distingue cor ou classe social – estamos todos na mesma, todos sujeitos, e todos com medo. Isso pode ter causado um aumento na empatia em relação àqueles que antes eram vistos como tão diferentes e distantes. Por conta disso, o sentimento de culpa pode estar presente em diversas pessoas – talvez a culpa por não ter percebido antes essa desigualdade ou de ter visto quem passa necessidades como tão distante da nossa realidade. Mas não é somente a culpa que nos move em direção à caridade, mas principalmente a empatia, o senso de propósito e o pensamento coletivo, e todas essas percepções foram ampliadas com a situação da pandemia.

Por que o voluntariado é uma prática que também se vê em evidência nestes momentos? Como agem e pensam essas pessoas que montam redes pelo bem?

Marjorie: Dentre todos os sentimentos e emoções que tivemos contato por conta da pandemia, um dos maiores foi a sensação de total falta de controle sobre a situação. Temos como controlar aspectos individuais, como higiene e distanciamento social, e até podemos trabalhar em prol da divulgação de medidas de prevenção, mas o fato é que não podemos parar a disseminação do vírus, não podemos fazer com que tantas pessoas parem de morrer ou que todos magicamente pensem coletivamente. Sendo assim, muitas pessoas passaram a se questionar sobre o que é possível controlar nessa situação, o que realmente está ao nosso alcance, e ações voluntárias surgem como resposta a algumas dessas perguntas.

A obrigatoriedade de desacelerar, de olhar ao redor e de perceber nossos privilégios pode ter levado as pessoas a perceberem que tem muito o que pode ser feito para ajudar os outros. O voluntariado poderia antes ser visto como uma possibilidade distante por algumas pessoas, por não terem dinheiro ou tempo, e agora temos visto novas possibilidade de ajudar mesmo sem sair de casa, o que amplia as possibilidades de pessoas que agora estão com uma maior abertura para ajudar.

O que a pandemia vai trazer de novo para a Psicologia?

Marjorie: Pautas da Psicologia estão em extrema relevância atualmente por conta dos desafios subjetivos que a pandemia tem imposto. Temos percebido um grande aumento de sintomas de ansiedade e depressão, uma ressignificação das relações sociais, muitos questionamentos inéditos surgindo por conta de momentos de introspecção e o agravamento de diversos outros sintomas psicológicos. Por conta disso, temos percebido também uma valorização da saúde mental, um assunto que passava despercebido para muitas pessoas, ou não era colocado como prioridade. É esperado que essa busca pela manutenção da saúde mental, e como consequência a valorização da Psicologia, perdurem mesmo após a pandemia.

Além disso, as pessoas têm se questionado quanto a seus propósitos e objetivos de vida, sobre como gastam seu tempo e a dedicação que dão a suas relações, porque a situação do imenso número de mortes e a possibilidade de adoecer nos coloca em contato com nossa finitude, o que gera uma série de questionamentos e mudanças internas. Por fim, a Psicologia tem muito a dizer e a contribuir com a necessidade de reestruturação de rotina, sobre a sensação de falta de controle, dificuldade de relação com pessoas que dividem a mesma moradia, sentimento de solidão, dentre várias outras questões que tem levado as pessoas a procurarem a psicoterapia online como um auxílio neste momento.

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