Medicina e seus desafios: os médicos vêm enfrentando uma série deles nos últimos anos que exigem de entidades de classe uma atuação cada vez mais forte. É o caso do Sindicato dos Médicos no Estado do Paraná (Simepar), que se dedica à defesa da atuação profissional e se depara, cada vez mais, com mudanças em relações de trabalho. Além disso, a formação profissional, da forma como acontece atualmente, vem impactando diretamente nas discussões sobre o futuro da Medicina.

Foi o que revelou o presidente em exercício do Simepar, Marlus Volney de Morais em entrevista à seção Paradigma do Saúde Debate. Médico formado pela Universidade Federal do Paraná, especialização em cirurgia geral, gastroenterologia e endoscopia digestiva, Morais também tem experiência em gestão de regulação e estratégias de saúde. É ainda autor do livro Auditoria em Saúde, publicado pela Saraiva em 2014, e co-autor do livro do Conceito à Implantação – Atenção personalizada à Saúde, publicado pela Unimed Paraná no mesmo ano, além de possuir vários artigos técnicos publicados em eventos nacionais e internacionais.

Nesta entrevista, Morais revela mais sobre Medicina e seus desafios, terceirização na área da saúde, relação médico-paciente e tecnologia. Confira:

Saúde Debate – Como presidente do sindicato dos médicos, qual é a sua visão sobre a Medicina e seus desafios? Quais são os principais a serem enfrentados para a defesa deste profissional?

Marlus Volney de Morais – A profissão médica está passando por uma grande alteração, que está relacionada à formação profissional e aos vínculos, não apenas aqueles de trabalho, mas também com as pessoas atendidas. Vimos uma grande despersonalização da relação médico-paciente. Esta é uma relação fundamental para que os resultados da atuação profissional sejam obtidos com excelência. Essa despersonalização, que também ocorre na relação de trabalho dos médicos com seus contratantes, passa por um ajuste bem delicado, porque transfere profissionais de locais de trabalho, o que provoca perda de vínculo com os pacientes que ele vinha atendendo até então. 

Hoje, o médico se tornou um profissional mais dependente de organizações de saúde, diferentemente do que tínhamos no final dos anos 90; a maior dependência das relações trabalhistas reduz a independência necessária à melhor execução do trabalho profissional médico. A redução da sua autonomia administrativa repercute no paciente. A tentativa de engessar a quantidade de pacientes atendidos em horas de trabalho, por exemplo, é uma das situações que tem suscitado muita discussão. Temos recebido isso, no sindicato, como um cerceamento da liberdade profissional. 

Hoje, em função do vínculo intermediado por uma organização de saúde – seja pública ou privada -, faz com que haja limitações e o profissional seja submetido a um “cronômetro”, e não haja um foco na qualidade. 

“Hoje, o médico se tornou um profissional mais dependente de organizações de saúde, diferentemente do que tínhamos no final dos anos 90; a maior dependência das relações trabalhistas reduz a independência necessária à melhor execução do trabalho profissional médico”.

Qual é o olhar sobre a terceirização? Este item faz parte da discussão sobre Medicina e seus desafios?

Se tenho uma relação direta médico-paciente, estabeleço um padrão de trabalho e um vínculo pessoal, de compromisso profissional, com aquela pessoa. Quando há um intermediário nesta relação, ou seja, uma organização traz o paciente para meu atendimento e, ao mesmo tempo, me oferece como profissional para um determinado grupo de pacientes; tenho uma interferência – de alguma forma – na relação médico-paciente. Quando uma organização de saúde terceiriza esse processo para outra organização, acrescenta mais uma figura no processo e, mesmo que a terceira tenha uma boa administração, cria-se uma relação entre quatro participantes da assistência, o que gera dificuldades. 

O sindicato é contra a terceirização, a partir do momento em que a relação médico-paciente passa por vários segmentos e intermediários, até que ambos se encontrem. E também porque, normalmente, a terceirização vai representar um ônus maior para aquele que já tinha a obrigação de ofertar um serviço de saúde e decidiu contratar um prestador. Essa conta, para ser fechada, pode resultar em prejuízo para o próprio contratante que solicitou esse terceiro ou para os profissionais. Na prática, a terceirização encarece o processo de assistência, do ponto de vista administrativo e financeiro. 

Existem argumentos mostrando que há terceiros que fazem uma administração enxuta, com know-how. É uma forma de pensar. Porém, se olharmos o mercado, raras são as empresas que têm essa capacidade ou qualidade no processo assistencial. 

Temos observado que, na verdade, a terceirização não estabelece o contrato de trabalho adequado com o médico. Não tem respeito à CLT na maioria das vezes e não há repasse de benefícios pelo exercício da profissão. E ainda muitas vezes obriga o médico a ser sócio da própria empresa. 

Seja no âmbito público ou privado, a relação profissional pode ser estabelecida com bons critérios e ajustes administrativos com as próprias entidades médicas e profissionais, sem a necessidade de terceiros. Podem ser criados critérios de qualidade e outros para atendimento. Por meio dessas entidades, é possível fazer treinamentos adequados, trazer conhecimento do ponto de vista técnico mais atual possível e fazer com que relação profissional seja organizada, sem nenhum tipo de esforço gerado, nem por parte da instituição nem pelos profissionais. 

“Na prática, a terceirização encarece o processo de assistência, do ponto de vista administrativo e financeiro”

A pandemia de Covid-19 impactou a relação do médico com seu contratante e até mesmo mudou a visão do trabalho desempenhado pelos profissionais de saúde?

As necessidades que a pandemia demonstrou foram fundamentais para entender que determinadas situações que precisam ser revistas com a urgência e importância que esse ramo de atividade exige. A pandemia mostrou que não adianta formar especialistas que não sejam necessários frente a demandas de saúde como a que vivemos; é preciso dimensionar o que efetivamente existe como demanda. Isso porque observamos no processo assistencial que 80% dos problemas mais frequentes têm condições de ser resolvidos por médicos com formação generalista. Tecnicamente, precisaríamos de profissionais especializados para 20% de necessidades, para as quais a formação exige treinamento, conhecimento e capacitação mais aprofundada. E, deste universo de 20%, poucos seriam de alta especialização. 

Hoje, nas universidades, não existe uma formação direcionada para essas necessidades do processo assistencial. Formam-se muitos especialistas – e super especialistas – , e há pouco direcionamento para formação generalista. 

A pandemia só reavivou a necessidade de rever a formação médica e as formas de trabalho, para dimensionar exatamente aquilo que precisamos quanto a profissionais formados no mercado, sem o abuso que existe hoje na formação de especialistas. É muito bom ter o especialista, mas ele precisa entrar no cenário da assistência no momento certo. Tem neurocirurgião fazendo plantão atendendo casos gripais. É um erro? Não. Mas é um desperdício, e isso tem um custo. É preciso dimensionar o que é necessário para atender a população, sob o risco de desperdícios muito grandes. 

“A pandemia mostrou que não adianta formar especialistas que não sejam necessários frente a demandas de saúde como a que vivemos; é preciso dimensionar o que efetivamente existe como demanda”

E qual seria o futuro para o profissional e da própria carreira, lidando com a Medicina e seus desafios?

O futuro da Medicina é uma verdadeira volta ao passado, mas com um grande detalhe: a tecnologia. Digo que é uma volta ao passado porque a Medicina vai se tornar cada vez mais personalizada. É necessário atender sob o contexto de vida do paciente e conjunto de efeitos sobre a sua saúde. E, olhando sob o ponto de vista médico, verificar o que é possível orientar. Isso envolve alimentação e atividade física, por exemplo, e não só o tratamento medicamentoso. 

Os exames de suporte ao diagnóstico serão personalizados à medida que consigo definir as proteínas que esse paciente é capaz de produzir e sobre quais devo atuar para que não haja um processo inflamatório, envelhecimento precoce ou risco de morte precoce. São situações muito pessoais. 

A Medicina sempre foi personalizada. Mas vou me valer de muita tecnologia, pensando não apenas em equipamentos, mas em medicamentos em doses e momentos apropriados, que, aliás, serão mais adequados para determinado paciente do que para outro. 

Precisaremos ter, nesse caminho, a formação de protocolos dos atendimentos para que não haja desperdícios, seja de recursos financeiros, de profissionais e organizações. Esses protocolos vão ajudar a dar encaminhamentos. Teremos, então, o protocolo definindo essa direção geral mais a personalização, mostrando pontos particulares. 

A tecnologia vai interferir de várias formas, inclusive no modelo de relacionamento. Hoje, existe a possibilidade de teleatendimento sem grandes dificuldades. Além disso, é possível colocar os dados da anamnese em uma base com Inteligência Artificial e ajudar o profissional a fazer o raciocínio clínico, com a vantagem da velocidade, juntando a hipótese humana à tecnologia. Já existem robôs que fazem associações e indicam os melhores tratamentos possíveis. Pode ser que eu, como profissional, não tenha a mesma velocidade de processamento de dados  que essas máquinas têm. 

A diferença do humanismo e da personalização no atendimento médico estará na sensibilidade da relação médico paciente associada ao conhecimento que eu coloco na máquina, pois ela não pensa sozinha. Assim, posso não respeitar a primeira sugestão de tratamento apresentada pelo robô, por exemplo, mas ir na segunda porque sei que será melhor para aquele paciente. Pode, até mesmo, demorar um pouco mais (o desfecho), mas será mais confortável para o paciente pelo que percebi dele, de sua família… O médico não se resumirá a um sensor, pois contribuirá fortemente com o “olhar humano” para o caso.

Estamos em um processo de evolução, que envolve a necessidade de um reposicionamento dos profissionais médicos, de não se deixarem levar pela máquina – não só administrativa e por equipamentos -, mas do resgate da relação médico-paciente. A humanização da Medicina, que nunca deveria ter sido perdida, precisa ser revivida na forma de escuta ativa.

Caminhamos para a Medicina personalizada, que não seja exclusivamente tecnológica, mediada por máquinas. Que exista toda a possibilidade diagnóstica e terapêutica que a tecnologia trouxe, mas, principalmente, a visão do todo, do que é efetivo para aquele paciente.

“Precisaremos ter, nesse caminho, a formação de protocolos dos atendimentos para que não haja desperdícios, seja de recursos financeiros, de profissionais e organizações. Esses protocolos vão ajudar a dar encaminhamentos. Teremos, então, o protocolo definindo essa direção geral mais a personalização, mostrando pontos particulares”

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