Caminhando e pensando

A luta diária pela sobrevivência impede que haja tempo para um olhar mais detido sobre o que acontece no ambiente externo do qual fazemos parte; é como se um processo de mimetização que nos transforma em mais um objeto, em mais uma coisa, em mais um dispositivo incrustrado na paisagem, como um poste da Copel, uma placa de sinalização do Detran, imerso na rotina do dia e que barra nossa percepção do mundo mágico, imponderável em que nos enfiamos.

Quando é possível olhar por cima ou por entre o normal e o conhecido, notam-se incontáveis detalhes e situações e pessoas e animais e construções e plantas… tanto colorido, sensações, vozes, barulhos que se afiguram como algo singular, não o normal, o simples, o cotidiano.

Percorrer ruas em manhãs frias, quando há uma névoa fina recobrindo, não o tempo nem o clima, mas nossa mente, torna-se quase impossível perceber que a geada transforma o gramado mais belo aos primeiros reflexos do sol. É impossível perceber que aquele velho senhor de barba comprida com um cigarro no canto dos lábios só quer receber a resposta ao seu bom dia e a seu comentário sobre o frio. É difícil perceber os olhos e as expressões faciais daqueles inúmeros motoristas aboletados na direção de seus carros modelo 2021, quiçá importados, que os enchem de prazer e orgulho por poderem ostentar aos famintos e maltrapilhos abandonados pela sorte e pelos governos, sua condição de abonados, donos de empregos muito bem remunerados. Gosto sempre de relembrar que na cidade do Porto em Portugal, todos os motoristas de taxi dirigem Mercedes no seu trabalho … Mercedes, orgulho e ostentação de tantos tupiniquins!

O ar gelado das manhãs outonais permite longas caminhadas de casa ao trabalho e são nestes momentos de passadas comedidas que vem à mente a reflexão sobre sentidos da existência, do nosso viver entre família, comunidade, o grupo restrito de colegas, que dificilmente poderão ser chamados de amigos íntimos. Os minutos percorridos pelas calçadas quase impróprias para andar dessa Curitiba moderna, trazem à tona outros minutos passados e vividos num tempo que não voltará mais, pois que se encontra enterrado sob os escombros de eras priscas e, assim, mente e imaginação trabalham construindo as relações entre um fato e outro, a sobreposição do antigo com o atual, o casamento entre a sensação real do agora com os resquícios do que foi sentido e percebido antes.

Passo a passo, caminhos são novamente percorridos de forma literal e de forma figurada. Há uma imensa bacia que recolhe num amontoado de imagens tudo o que foi pensado e o que está por se pensar. Mistura-se tudo num turbilhão de valores, impressões, sentimentos e emoções e, por vezes, já não sabemos se a lembrança foi em algum tempo real ou se agora está embaralhada no pensamento, confundindo-se no passado e no presente. Já não há certeza nenhuma se foi vivenciado ou se somente imaginado. Sempre restará a alternativa do sonho … sonhei com você e …

Como as pegadas que são abandonadas, esquecidas, diluídas e desmanchadas por tantos outros passos e por tantas outras criaturas, a vida vai abandonando, cobertas pela pátina de tempos quase imemoriais, as lembranças que um dia acalentamos. Tornaram-se tão esmaecidas e fugidias, agora cada vez mais indeléveis, que esforço grande demais é necessário para conservá-las ilesas, materializadas ou simplesmente deixá-las no recôndito da alma, onde, um dia, quem sabe, ressurgirão das cinzas do passado.

Se o hoje se mostra sombrio, sem esperança, com muitos mortos ceifados pela peste, quem sabe nossa esperança deve ser depositada naquele ser superior, lá nas alturas celestiais… vamos confiar e ter fé que sairemos dessa!!!

* Gilmar Rosa é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Positivo e História – Memória e Imagem pela Federal do Paraná. Executa, atualmente, atividades voltadas ao desenvolvimento de projetos e planejamento estratégico em cooperativa médica. É colunista do portal Saúde Debate

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