Aborto: a pena do estado e da sociedade

Para começar, antes de qualquer juízo de valor ou julgamento, é importante esclarecer que ninguém é “a favor” do aborto, partindo-se da premissa de que como seres humanos procuramos, ao máximo, o nosso bem-estar e o do outro.

Nesse contexto, a questão do aborto não pode ser considerada de forma polarizada, ou seja, quem aprova e quem desaprova, o aborto em si é reprovável, independente da vontade, do entendimento, do julgamento de quem quer que seja. Esse é um caminho difícil que algumas mulheres percorrem sem querer.

Dito isso, o que deve ser levado em conta, como prioridade, é a situação que leva uma mulher a tomar essa decisão, a pensar em tomar tal atitude, o que a leva a tão difícil caminho. Mais uma vez, não é natural que a mulher deseje o aborto, nenhuma pessoa em sã consciência desejaria.

E é nesse ponto que precisamos nos atentar. Primeiro, como já dito, o que leva uma mulher a pensar e até realizar um aborto? Segundo, a criminalização dessa mulher em decorrência desse ato já tão sofrido é o caminho para que tenhamos mais proteção a vida do feto?

No Brasil, o artigo 128 do Código Penal prevê duas hipóteses de aborto legal: 

a) Se não há outro meio de salvar a vida da gestante. É o chamado aborto “necessário” ou “terapêutico”;

b) No caso de gravidez resultante de estupro. Trata-se do aborto “humanitário”, “sentimental”, “ético” ou “piedoso”.

Há, ainda, uma exceção da jurisprudência do STF: A ADPF 54, em que o STF decidiu que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta atípica. Assim, por força de interpretação jurisprudencial, realizar aborto de feto anencéfalo não é crime.

Portanto, fora dessas hipóteses, o aborto é crime quando realizado em qualquer fase da gravidez.

A realidade é que, ainda assim, mulheres realizam abortos todos os dias, procuram meios de realizá-lo e nem sempre encontram ambientes adequados e salubres, se expõem a procedimentos precários e arriscam suas vidas e saúde.

Assim é que, ainda que não seja permitido, que seja crime, a situação vivida por essas mulheres, a falta de apoio, o contexto social em que vivem, tudo isso contribui para que elas levem a frente essa decisão, mesmo que de alto risco.

Por outro lado, o direito à vida é um dos pilares da Constituição Federal, devemos respeitá-lo.

Na verdade, o melhor a fazer é prevenir, evitar a gravidez indesejada, ter como escolher o melhor momento, planejar e ter apoio. Mas, escrevendo isso, penso como é difícil conciliar tudo isso no contexto em que vivemos, falta tudo, falta educação, falta estrutura familiar, falta acesso aos direitos mais básicos de um ser humano, como saúde e segurança públicas.

As pessoas não conhecem meios de prevenção, não conhecem as consequências de seus atos, por isso, procuram o “remédio” quando não têm alternativa possível. Essa é a triste realidade do Brasil.

Há esperanças de que no futuro as próximas gerações tenham a consciência e a estrutura para evitar passar por tais situações, que a educação seja o principal meio de proteção à vida e que nenhuma mulher precise se submeter ao aborto. Mas para hoje precisamos de outras ações, o fomento à educação é, sem dúvidas, o principal deles, além de políticas públicas que possam atender essas mulheres, que possam oferecer alternativas.

Por fim, a criminalização não vem surtindo efeitos, não evita o pior, não protege a vida do feto, nem poupa a saúde e a vida de muitas mulheres.

O Ministro do STF, Luiz Roberto Barroso, em uma de suas decisões sobre o aborto esclareceu:

“O aborto é um fato indesejável, e o papel do Estado e da sociedade deve ser o de procurar evitar que ele ocorra, dando o suporte necessário às mulheres. Essa é a premissa sobre a qual se assenta o raciocínio aqui desenvolvido. Reitero, porém, o meu entendimento, já manifestado em decisão anterior (HC 124.306), de que o tratamento do aborto como crime não tem produzido o resultado de elevar a proteção à vida do feto. Justamente ao contrário, países em que foi descriminalizada a interrupção da gestação até a 12ª semana conseguiram melhores resultados, proporcionando uma rede de apoio à gestante e à sua família. Esse tipo de política pública, mais acolhedora e menos repressiva, torna a prática do aborto mais rara e mais segura para a vida da mulher.

Acesso aos serviços públicos de saúde, aconselhamento adequado, informações sobre métodos contraceptivos e algumas gotas de empatia produzirão melhor impacto sobre a realidade do que a ameaça de encarceramento. Atirar no sistema penitenciário mulheres que já vivem um quadro aflitivo, quando não desesperador, é não compreender a grandeza do sofrimento de quem se encontra em tal situação. Ninguém faz aborto por prazer ou por perversidade.” (AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.581 DISTRITO FEDERAL)

 

Não é simples atender a tão difícil questão, proteger a vida de ambos, feto e gestante, evitar que seja cogitado o aborto e que se mantenha, em qualquer circunstância a vida e a integridade física e mental. Que não sejamos tão “práticos” ao defender o crime e a ameaça de encarceramento como única solução, mas que, também, não deixemos de defender a vida, seja ela de quem for. Que sejamos instrumentos de empatia, como bem disse o Ministro em seu voto, que possamos exercer nossa cidadania fazendo nossa parte quando nos depararmos com situações assim e que façamos as cobranças necessárias do Poder Público para que seja alcançada a melhor solução no menor tempo possível.

 

  • Em caso de necessidade própria ou de outra mulher que esteja passando por qualquer tipo de violência, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.

Este é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em todo o Brasil. As ligações para o número 180 podem ser feitas de qualquer aparelho telefônico, móvel (celular) ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, aos finais de semana e feriados inclusive.

* Viviane Teles de Magalhães Araújo é advogada com atuação no mercado corporativo nas áreas cível e trabalhista; Mestra em Direito (Direitos Fundamentais Coletivos e Difusos), Especialista em Direitos Humanos e Questão Social, MBA em Direito Empresarial, Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Autora do livro “Mulheres – Iguais na Diferença” e do artigo “A igualdade de direitos entre os gêneros e os limites impostos pelo mercado de trabalho à ascensão profissional das mulheres”, além de colunista do Saúde Debate

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