Recentemente fomos surpreendidos pela morte de uma criança negra no nordeste do país. O menino era filho de uma empregada doméstica, uma mulher que precisa trabalhar para o sustento da sua família e que, até onde se sabe, criava essa criança sozinha, sem o pai, sem a família, sem vizinhos, sem amigos, sem Estado que a amparasse.
A criança foi deixada por instantes com a patroa dessa mulher, para que ela (a empregada) pudesse levar o cachorro para passear. A patroa, por sua vez, deixou que a criança fosse sozinha procurar a mãe na rua. Foi pelo elevador. Não encontrou a mãe. Caiu de uma altura de 35 metros após ter acesso a um outro andar do prédio. Uma tragédia.
Muitas manifestações sobre a condição da mãe, seu trabalho, sua cor. Sobre essa mãe estar no trabalho durante a quarentena que estamos tentando cumprir em razão da pandemia de Covid-19. Muitas opiniões e julgamentos. Mas a questão vai muito além da conduta da patroa e da pandemia.
Há nesse contexto uma mulher. Uma mulher negra, pobre, trabalhadora e sozinha. Ela não tinha com quem deixar a criança. Ela precisava trabalhar. A patroa não abriu mão do trabalho da empregada doméstica, não a dispensou, e também não teve o cuidado necessário com a criança de 5 anos que ficou sob seus cuidados por alguns minutos. São tantas questões envolvidas.
Não é difícil concluir que aquela mulher não teve que levar seu filho para o trabalho somente nesse período de pandemia. Certamente ela se viu nessa situação outras vezes. Imaginem quantas mulheres que precisam trabalhar se veem, de vez em sempre, sem alternativa quando não tem com quem deixar seus filhos para ir ao trabalho? Muitas. E uma mulher negra tem suas dificuldades elevadas a uma potência gigante.
Sobre a responsabilidade da patroa, é inegável. Houve culpa ou dolo eventual (quando se assume o risco de produzir o dano), mas isso não é um fato isolado, essa mãe perdeu seu filho também por conta da falha estrutural que vivemos. É muito mais que racismo. É muito mais que preconceito. É invisibilidade. É desprezo por direitos essenciais.
É confortável contar sempre com o cuidado que mulheres oferecem nos mais diferentes níveis da sociedade. Até mesmo as próprias mulheres, muitas delas, são insensíveis às dificuldades de outras mulheres. Mulheres servem. Mulheres negras ainda mais são consideradas criadas do mundo. A responsabilidade por essa tragédia não é só da patroa. Essa responsabilidade é de todos, de toda a sociedade, do Estado. É devida justiça para a mãe que perdeu seu filho. Justiça para todas as mães e mulheres que trabalham e cuidam todos os dias, cuidam dos seus filhos, dos filhos dos outros, dos irmãos, de seus pais, dos animais domésticos, dos vizinhos, do mundo.
Segundo dados do PNAD 2014, a jornada regular em horas semanais é de 44 horas, a jornada total de uma mulher é de 54,7 horas e dos homens (total) de 46,7, ou seja, mulheres trabalham 8 horas em sobre jornada. (IPEA, 2017. p. 17)
O fato é que as atividades relacionadas a cuidados com dependentes acabam sempre por recair sobre as mulheres, ainda que possam compartilhá-las com o cônjuge ou companheiro, quando este é presente na família. Os homens, em que pese a entrada das mulheres no mercado de trabalho, de forma expressiva a partir da segunda metade do século XX, não acompanharam tal processo, no sentido de participar da distribuição de tarefas domésticas e familiares. Nem ao menos foram implementadas todas as políticas públicas ou mudanças na organização produtiva do trabalho que permitissem a conciliação no âmbito da família (MAGALHÃES, V.T., 2018, p. 140 apud ABRAMO, 2010, p. 19)
Portanto, para a maioria das mulheres o trabalho é um desafio maior do que é para os homens. A dedicação irrestrita ao trabalho não faz parte do dia a dia de uma mulher. Isso se traduz em números, as desigualdades de gênero ficam evidentes com relação a inserção de homens e mulheres no mercado de trabalho. As taxas de participação de mulheres são significativamente inferiores em relação às masculinas, de 57% e 79%, respectivamente, e essa diferença vem se mantendo desde 2005. (IPEA, 2017, p. 8)
Como já dito, esse desafio é ainda maior para mulheres negras, elas que têm que enfrentar além do preconceito de gênero, o preconceito da cor e da raça. Quando se considera a desigualdade de gênero e a de raça, percebe-se que se acentuam as diferenças. Segundo dados do IPEA, em 2009, homens brancos possuíam o maior índice de formalização, ou seja, 43% trabalhavam com carteira assinada, já mulheres negras apresentavam o pior índice, 25% trabalhavam formalmente (carteira assinada). (IPEA, retrato das desigualdades de gênero e raça, 2011)
Não é difícil perceber que as consequências da desigualdade, tanto de gênero como de raça, são muitas e variadas. Atingem a todos e de formas trágicas também. Por isso, tratar desigualdades deve ser prioridade não só do Estado, mas de toda a sociedade. Que todos se comprometam a fazer sua parte.
Em caso de necessidade própria ou de outra mulher que esteja passando por qualquer tipo de violência, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.
Este é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em todo o Brasil. As ligações para o número 180 podem ser feitas de qualquer aparelho telefônico, móvel (celular) ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, aos finais de semana e feriados inclusive.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ü IPEA. Nota técnica nº 35: Previdência e gênero: por que as idades de aposentadoria de homens e mulheres devem ser diferentes? 2017. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Governo Federal. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
ü MAGALHÃES, V.T., Mulheres – Iguais na Diferença. 1 ed. Rio de Janeiro/RJ: Lumen Juris, 2018. V. 01. 220p.
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p class=”ql-align-justify”>ü Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada … [et al.]. – 4ª ed. – Brasília: Ipea, 2011. 39 p. : il.
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