Desde que a pandemia foi reconhecida formalmente pela Organização Mundial da Saúde, em Março de 2020, o planeta assiste a uma série de repercussões decorrentes da COVID. A humanidade passou por uma transformação compulsória e traumática em inúmeras frentes. Como foi algo inédito na história recente, as incertezas de como agir foram a constante. Em políticas públicas de saúde, os entendimentos de cada nação variaram muito, com indicações que englobaram desde medidas preventivas comportamentais, vacinação, protocolos terapêuticos, indicações sobre isolamento, adoção do lockdown. O quanto cada medida foi ou não eficiente só foi possível após as tentativas e erros sucessivos, gerando uma curva de aprendizado coletivo que permanece em curso até hoje e, provavelmente, seguirá nos próximos anos. Muito tem-se aprendido. Algumas respostas, do que funciona e do que não, já foram respondidas. Para outras tantas ainda não há indicação segura.
Em paralelo à doença, vieram as repercussões econômicas, políticas, sociais. Em cada campo, a adaptação foi regra. Todo este cenário refletiu também em mudanças de planejamento estratégico de empresas, na atividade laboral de empregados e em novas demandas para a saúde corporativa.
Uma das repercussões imediatas nitidamente sentida pelas empresas, foi o surgimento de absenteísmo médico devido as indicações de isolamento frente a suspeitas de quadros compatíveis com COVID ou mesmo com contactantes. A falta de um funcionário, em geral, acaba sobrecarregando as atividades dos demais presentes e, quando este processo torna-se recorrente, há inúmeros problemas, como fadiga da equipe e desmotivação. A ausência do trabalhador também teve outra origem, quando colaboradores que se enquadravam como grupo de risco eram afastados. As incertezas sobre como definir grupos de risco, assim como várias outras definições desta doença nova (como condutas terapêuticas), têm indicações variadas a depender da fonte utilizada. Não era também incomum observar as mudanças sucessivas de conduta no decorrer de poucas semanas de uma mesma fonte.
As legislações relacionadas à saúde do trabalhador quanto à COVID também foram surgindo e jurisprudências começaram a ser formadas. Os profissionais do setor jurídico precisaram estar afinados e em constante acompanhamento do que está sendo publicado a fim de atender aos requisitos legais. Ainda há muitas incertezas, como por exemplo, se vacinação pode ou não ser exigida compulsoriamente por empregadores.
Em relação à patologia, não bastasse o efeito imediato da doença aguda, com o passar dos meses referências consistentes mostraram que a doença deixa sequelas em parte dos acometidos. Um estudo recente apontou que 26% dos infectados, após 6 a 8 meses da doença, mantinham sintomas como fadiga, falta de ar e alguns desenvolveram depressão. (https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0254523).
Sobre a repercussão em saúde mental, números do Brasil apontam quadro preocupante. Entre 2019 e 2020, segundo uma pesquisa realizada baseado em dados de mais de 330 mil empregados, o afastamento por saúde mental subiu 23 % ( https://exame.com/carreira/transtornos-mentais-afastamentos-trabalho-covid/). Os auxílios-doença reconhecidos pelo INSS como transtornos mentais subiram 33,7% e as aposentadorias por invalidez tiveram alta de 20,4% no período. ( https://cnf.org.br/afastamento-por-transtorno-mental-dispara-na-pandemia/). Os números são alarmantes e abordar o assunto é questão prioritária para muitas empresas.
Neste cenário de dificuldades e dúvidas em saúde, o médico do trabalho corporativo foi um profissional bastante requisitado. Políticas internas de como definir medidas preventivas, identificação de grupos de risco e conduta, triagem de COVID para acesso à empresa, conduta frente a casos suspeitos e confirmados, isolamento de contactantes, fluxo de atendimento de casos graves, acompanhamento de absenteísmo e afastamentos por COVID foram alguns temas recorrentes e desafiadores. Porém, outras repercussões foram sendo observadas com a marcha da pandemia.
A COVID teve também um efeito que à primeira vista pareceu um paradoxo: houve queda nas despesas assistenciais nos planos de saúde durante a pandemia. Pela primeira vez houve exigência da ANS para redução nas mensalidades dos planos de saúde individuais em decorrência da redução das despesas das operadoras de saúde (https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2021/07/usuarios-de-planos-de-saude-individuais-terao-reducao-na-mensalidade ). Em relação aos planos coletivos empresariais, embora não tenham a variação de mensalidade regulada pela ANS, muitos também tiveram menor gasto. Esta economia aparentemente deveu-se a não realização de procedimentos eletivos, que foram proibidos ou desestimulados durante os momentos mais graves da pandemia.
Os efeitos colaterais desta redução de uso do sistema de saúde suplementar estão sendo estudados. Há quem argumente que este fato levou a um represamento de procedimentos eletivos evitados, mas que precisarão ser realizados adiante. Outros estudiosos apontam que a procura tardia por serviços médicos em situações graves (como infarto agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral) pode ter ocasionado em uma evolução da doença em domicílio levando a desfecho fatal potencialmente evitável. Também pode ter existido o adiamento da investigação de doenças graves, como câncer, adiando o diagnóstico e tendo piora de prognostico (https://abccardiol.org/short-editorial/eventos-cardiovasculares-evitaveis-um-serio-efeito-colateral-da-pandemia-de-covid-19/ ). Acredito que caiba a necessária conscientização, por meio de ações educativas, para que haja busca de atendimento médico imediato nos casos necessários e que não devem ser protelados. Também vejo como importante retomar o cuidado preventivo de doenças e promoção à saúde. São práticas que salvam vidas e devem ser reafirmadas.
Sobre atendimento médico, a pandemia foi a mola propulsora para a telemedicina se popularizar no país, autorizada pela lei nº13.989 de abril de 2020. Porém, não há uma regulamentação detalhada de como deve ser utilizada. Entre os próprios médicos é assunto de embates. Há discussões em andamento sobre qual a forma de ser utilizada para benefício dos pacientes e como contornar a dificuldade de não haver exame físico presencial durante a consulta. Várias opções estão sendo levantadas, como uso de dispositivos que providenciem mais dados de exame físico (como pressão arterial, ausculta cardíaca e pulmonar) a serem considerados durante a avaliação. Outros alegam que a telemedicina de maneira geral está servindo para precarização da qualidade de atendimento médico por disponibilizar apenas uma avaliação mais superficial. Pessoalmente, acredito que a telemedicina é um meio de atendimento que pode ser extremamente útil desde que melhor regulamentado, sendo importante firmar diretrizes técnicas e legais para que haja qualidade e segurança ao médico e especialmente ao paciente, constituindo em uma nova via de relacionamento médico-paciente.
Diante das contingências da pandemia, muitos programas de qualidade de vida em corporações ficaram em segundo plano. Esta situação não contribuiu com as questões envolvendo adoecimento mental, controle de doenças crônicas e sobrecargas decorrentes do absenteísmo. Haver um incentivo e facilidade de acesso por meio da empresa para incentivar saúde e bem-estar pode fazer parte de uma ação estratégica corporativa que tem como consequências vários benefícios para sustentabilidade da força de trabalho e financeira. O tema que tem sido mais enaltecido nos últimos meses é das doenças psiquiátricas, mas aparentemente é por uma reação frente aos dados revelados sobre aumento da incidência de doenças mentais. Entretanto, é preciso retomar programas visando a saúde integral, visto que a pandemia causou impactos que afetam outras frentes. Acredito que é um caminho a ser trilhado.
Se há algum ponto positivo em meio a esta tragédia foi a de dar maior valor ao que muitos perderam: a saúde. No campo de saúde corporativa, o contexto nos convida a concordar com a frase do professor Robert Karsh: “Nem todas as empresas precisam investir em qualidade de vida, promoção da saúde ou coisa parecida. Só aquelas que querem ser competitivas no século XXI”.
*Guilherme Murta é especialista em Medicina do Trabalho pela AMB/CFM. Mestre em Ensino nas Ciências da Saúde. Membro do Grupo de Diretrizes da ANAMT, Ex-Presidente da APAMT. Autor de capítulos de livros e artigos de saúde e segurança do trabalho. Professor convidado no MBA Executivo na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e na Especialização de Medicina do Trabalho UFPR.
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