Estamos completando dois anos do início do recolhimento e do afastamento social pela pandemia de Covid-19 e todas as suas nefastas variantes. Até ainda ontem tínhamos nossas confortáveis e ergométricas cadeiras modernas, mesas repletas de nada, pois nada poderia aparecer sobre elas que representasse desorganização, tais quais aqueles vetustos programas das fábricas japonesas para serem cumpridos à risca! Saudosismo? Não, porque parece que foi ontem mesmo quando fomos obrigados a pegar nossas bugigangas do escritório e nos enfiarmos em nossas casas, com toda a carga e peso que a situação demandava: falta de espaço e de móveis apropriados, baixas velocidades das conexões de internet, filhos, cachorros, gatos, vizinhos a gritarem, roupas por lavar e por aí vai.
Ouvi sobre muita gente levando cadeiras, mesas, computadores, descanso para os pés, mouses, “hard disk” … ouvi sobre isso e acredito que foi pouco. Muito mais haveria de ter para nos sentirmos no conforto do escritório moderno, bonito, cheirando a novo. Estávamos tão acostumados com a rotina de entrar todos os dias com o dedo em riste para assinalar nossa presença nos sistemas de acompanhamento e controle de comparecimento… mas, aí veio a praga e, pronto, tudo acabado.
Num átimo deixamos para trás os cafés matinais com tortas frias, cachorrinhos quentes, caponatas, pães, canjicas, pipocas, guloseimas e piadas e conversas sobre a vida, sobre as pessoas, sobre o PGV, sobre os desgarrados e afastados, sobre o “deixou de ser” ou o “não faz mais parte”, sobre o atendimento médico bom para uns, nem tanto para outros. Era nosso cotidiano, nossa rotina, nossa vida que, de repente, acabou!
Algumas criaturas mais sociáveis quedaram-se estupefatas porque os almoços comunitários no Mercado Municipal, no Easy Chef, no Friends, no Recanto Gaúcho, até naqueles chineses do Muffato não mais aconteceriam, estavam proibidos pelo medo da contaminação … e mais não sei de outros lugares, por que mais não me convidaram. Enfim, a vida é assim mesmo!
Em dois anos tudo se transformou. Os relacionamentos sofreram em demasia com a distância, a falta de contato físico, como abraços, beijos, afagos, conversas ao pé do ouvido. O distanciamento separou o que poderia já ser frágil. Teleconferências, reuniões virtuais, bits e bytes sobrecarregaram os ombros de muitos e de todos. As máscaras esconderam e ainda escondem rostos tristes pela distância do abraço, do sorriso, da mão no ombro. Se já não era fácil sobreviver no mundo corporativo com todas as suas armadilhas, entraves, oposições e desmandos, imaginem passar por isso sem ter a quem declarar seu ódio ou seu amor por uma regra imposta, uma negativa de compensação ou folga, algumas horas a mais no expediente diário!
O mundo mudou e continua mudando sem percebermos que os contatos pouco a pouco foram sendo substituídos e diluídos por curtidas, “likes” e “dislikes” no mundo digital. As redes sociais amplificam a apologia ao eu egoisticamente superior sempre de bem com a vida, eternamente feliz, desfrutando momentos impagáveis, com um sorriso de orelha a orelha, repleto de cenas cinematográficas, de corpos sarados e perfeitos, roupas ultra super mega “fashion”, bebidinhas e comidinhas nos lugares mais “point” do planeta – sim, isso tudo passou a valer bem mais do que aquele abraço esquecido nas brumas da época anterior a pandemia! Muito triste! O que a vida quase monástica nos levou a aceitar e a compactuar? No vai e vem das ondas e das variantes, fomos nos fechando e nos abrindo, usando e deixando de usar máscaras, mas continuamos longe daquilo que éramos em 2019.
Dois anos de afastamento! O que perdemos? O que deixamos de ser com medo de morrer e sofrer? O que deixamos de valorizar? O que deixamos morrer, fenecer e apodrecer nos mais recônditos desvãos de nossas almas inseguras, lutando para que a luz do sol matasse o maldito vírus? No que nos transformamos nestes dias de dor, sofrimentos, mortes e fim de contatos? Ainda é possível resgatar o que algum dia fomos? Algum dia voltaremos a ser os mesmos? Mentes e almas e corações superarão a crise, o afastamento, a falta de contato?
Se antes corríamos para o abraço apertado, agora corremos para longe de quem pode nos trazer o mal sob uma máscara. Que tipos de novos relacionamentos surgirão a partir da constatação de que o vírus maldito está sempre a se reproduzir das formas mais malévolas, aperfeiçoando sua forma de matar? Seremos fortes para suprimir a dor de tantas mortes e sobreviver com os cadáveres amontoados mês após mês num Brasil já há muito dilacerado pela pobreza, pela miséria, pela falta de perspectivas, pela falta de homens e mulheres bons para dirigir nossos destinos indefinidos, motivos suficientes para sucumbirmos pela falta de esperança?
Tal qual lendas, mitos e invenções criados por motivos tão diversos para satisfação de interesses, às vezes espúrios e escusos, a trajetória da peste da Covid-19 carregará em seu bojo inúmeras lendas, mitos e invenções. No porvir, milhares acreditarão que os chineses tentaram destruir a civilização judaico-cristã-ocidental, produzindo em laboratório um vírus potente. Outros tantos acreditarão nos registros das entidades de prevenção, das universidades renomadas, da OMS, da Anvisa, ou qualquer órgão dito oficial que trabalhou em prol da descoberta da vacina. Outros tantos apenas acreditarão nas falácias jogadas de forma contumaz em nossos cotidianos. Lendas, mitos e invenções não precisam do suporte de fatos, disseminam-se em textos, mensagens, conversas e notícias, falsas ou não. É assim que se produzem mitos e lendas – fatos deturpados, fatos inexistentes, sem provas, sem verificação.
Espera-se que os mais de 640 mil mortos pela Covid-19 não sejam lembrados como lenda ou invenção, já que alguns “terraplanistas” ainda insistem em dizer que os registros das mortes não são fidedignos, meras invenções da imprensa e de outros órgãos para assustar a todos. Onde estamos, meu Deus? A pandemia acabou com a solidariedade aos enlutados pela peste?
Espera-se que toda dor e sofrimento de tantas famílias sejam utilizados para transformar e melhorar nossos sistemas público e privado de saúde. Espera-se que a esperança triunfe ante tanta descrença e desinformação, que a luz brilhe fortemente nos nossos olhos e das futuras gerações para celebrarmos a vida, os abraços, os relacionamentos, os encontros, os almoços e jantares, os postos de trabalho, enfim a vida que perdemos cerca de dois anos atrás!
*Gilmar Rosa é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Positivo e História – Memória e Imagem pela Federal do Paraná. Participou na execução de um dos mais importantes projetos de implantação de APS no estado do Paraná em 2014. Atualmente, busca um lugar ao sol que tenha águas cálidas e agradáveis durante todo o ano.
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