Vida leve: um sonho feminino

    Eu lembro de quando era criança e via minha mãe saindo para o trabalho. Eu não entendia o porquê, nem achava que ela devia ficar, eu só queria que ela ficasse.

    Minha mãe tem 70 anos. Naquela minha época de criança ela era uma mulher jovem, com seus 20 e tantos anos. Ela tinha sonhos, ela tinha planos. A sua geração já era de mulheres que trabalhavam fora. E ela tinha outra mulher que a ajudava. Uma outra mulher que também deixava seu filho para trabalhar. E foi por isso que deu certo. Foi uma bonita parceria.

    Minha mãe trabalha até hoje. Minha tia (como chamamos a mulher que nos cuidou quando crianças) também, agora cuida dos meus sobrinhos, filhos da minha irmã mais nova. Ela é nossa tia. É da nossa família. Segue cuidando.

    Essa geração de mulheres saiu para trabalhar. E essas mulheres precisavam trabalhar. A necessidade de trabalhar não era só para ter uma renda ou um complemento de renda, mas para a sua própria necessidade de trabalho, de produzir e de ser por elas mesmas. Muitas delas, tenho certeza, não tinham essa consciência. E hoje, após muitas lutas e algumas conquistas, temos muito mais espaço no mercado de trabalho.

    Conseguimos espaço. Espaço demais. Espaço para muitas tarefas, muito além do doméstico. Não deixamos nada para trás. Não fizemos escolhas. Acumulamos. Afinal, uma mulher não é uma mulher se não for mãe, se não cuidar. É isso mesmo? 

    Acho que era isso que minha mãe sentia. Ainda que de forma inconsciente. Naquela época, o casamento e a maternidade eram o caminho. O indiscutível caminho. Mas o trabalho já estava nesse trajeto também. E no caminho tudo se juntou e a mulher trouxe consigo mais uma jornada. Assumiu sem apoio. Ou melhor, com o apoio de outras mulheres. Mulheres cuidam, não é?

    Mas espere aí! Eu também via meu pai sair. E eu sentia a mesma coisa: eu queria que ele ficasse. 

    Meu pai também trabalhava fora. Lembro que ele se ausentava bem mais, por mais tempo. Saía tranquilo (acho eu). Tranquilo no sentido de que alguém cuidaria da casa e de nós (os filhos). Alguém nos daria o que comer, nos daria banho e levaria para a escola. Alguém também haveria de nos buscar no final da tarde e levaria ao médico, se fosse preciso, e lavaria nossas roupas, cuidaria do nosso lanche da escola. Lembrei! Minha mãe trabalhava como professora pela manhã e sempre trazia nosso lanche para a escola quando voltava. Ela comprava na cantina da escola que dava aulas. Ela pensava em tudo. Mesmo quando estava no trabalho. O outro trabalho.

    E meu pai não se preocupava? Sim! Claro! Assim como eu sentia a falta dele, ele também sentia nossa falta e se preocupava. Mas ele foi educado para não se comprometer. Não o culpo. Ele não tinha consciência. Para ele era natural agir assim. Ainda é assim para vários pais, e é assim que funciona em várias famílias. E muitas mulheres, muitas mães ainda agem assim, assumindo tudo em relação ao dia a dia dos filhos e da casa, e com seu exemplo ensinam os filhos e filhas como agir. Pelo exemplo. Pelo costume. 

    Os maridos, os filhos, os homens. Eles não têm o peso que carregamos. Eles saem de manhã certos do seu dever. O seu dever fora de casa. Sim, sei que há muitos homens que assumem tarefas em casa, mas isso ainda é exceção. Enfim, eles crescem vendo a realidade que nos deixa sobrecarregadas. Eles entendem que isso é natural. E mesmo as mulheres, muitas delas, ainda encaram como natural assumir todos os cuidados. Isso é cultural, é fruto de uma cultura muito enraizada, baseada nas regras do patriarcado, onde o homem provê e a mulher cuida.

     

    É certo que já demos passos importantes para nos distanciar dessa cultura, mas ainda há um longo trajeto a ser percorrido. E esse caminho precisa ser percorrido. Há uma urgência em tirar esse peso das mulheres. Muitas delas adoecem por não conseguir atender a tantas demandas. Não é só cultural. É também uma questão de saúde.

    Um exemplo comum das consequências de uma entrega ao trabalho de forma ilimitada (várias jornadas) é a Síndrome de “Burnout”, o esgotamento físico e mental causado pelas condições de trabalho desgastantes. Essa síndrome é muito comum em mulheres que assumem várias jornadas de trabalho – 1) veja a nota abaixo

    E é muito importante destacar, que não só mulheres casadas ou com filhos que se envolvem em muitas jornadas. Não. Qualquer mulher é considerada muito disponível para cuidar.

    Eu me vejo nessa situação. Não de adoecida. Mas de uma mulher que faz de tudo, e o pior, que entende que tem e pode fazer esse “tudo”. Porém, eu, consciente, tento passar outra noção para o meu único filho (menino). A noção de que nada é determinado pelo gênero, mas pela nossa capacidade humana de ajudar. Quem sabe as próximas gerações consigam equilibrar melhor o trabalho que é de todos.

    Voltando lá para a minha infância, eu queria meus pais, os dois. Não nascemos sabendo ou com as funções determinadas, o que homens e mulheres fazem ou devem fazer. Nós aprendemos. Por isso, é perfeitamente possível equilibrar tarefas e dividir justamente entre homens e mulheres o que deve ser provido e que deve ser cuidado. Alterar a rota, seguir outro caminho e dar outros exemplos.

    PS.: Quem sabe num futuro bem próximo a gente possa dividir não só o trabalho, mas a delícia que é estar com os filhos e em casa.

    1) “A síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é um distúrbio psíquico descrito em 1974 por Freudenberger, um médico americano. O transtorno está registrado no grupo 24 do CID-11 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) como um dos fatores que influenciam a saúde ou o contato com serviços de saúde, entre os problemas relacionados ao emprego e desemprego.

    Sua principal característica é o estado de tensão emocional e estresse crônicos provocado por condições de trabalho físicas, emocionais e psicológicas desgastantes. A síndrome se manifesta especialmente em pessoas cuja profissão exige envolvimento interpessoal direto e intenso.

    Profissionais das áreas de educação, saúde, assistência social, recursos humanos, agentes penitenciários, bombeiros, policiais e mulheres que enfrentam dupla jornada correm risco maior de desenvolver o transtorno.” (grifo nosso) (https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/sindrome-de-burnout-esgotamento-profissional/)

    ·      Em caso de necessidade própria ou de outra mulher que esteja passando por qualquer tipo de violência, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.

    Este é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em todo o Brasil. As ligações para o número 180 podem ser feitas de qualquer aparelho telefônico, móvel (celular) ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, aos finais de semana e feriados inclusive.