O atendimento médico a distância, conhecido como telemedicina, está regulamentado por uma resolução de 2002 do Conselho Federal de Medicina (CFM). A resolução trata, basicamente, do atendimento de um médico assistente sob supervisão de um profissional mais experiente a distância. A resolução não prevê teleconsulta, telediagnóstico ou telecirurgia. Uma resolução neste sentido foi aprovada em 2018, mas revogada antes mesmo de entrar em vigor.
Desde então, o CFM vem promovendo audiências e consultas públicas para reeditar a resolução, esclarecendo os principais questionamentos ao texto de 2018.
O debate foi retomado para que entidades médicas, como a Associação Médica Brasileira, as associações estaduais e as sociedades de especialidade, apresentem suas contribuições ao texto da nova resolução sobre telemedicina. As sugestões devem ser enviadas até o dia 19 de fevereiro de 2020. A expectativa é de que uma nova resolução seja aprovada até o fim do primeiro semestre de 2020.
“Houve críticas de algumas entidades médicas sobre a falta de debate e preocupação como a forma que estavam definidos alguns aspectos da nova resolução. Então, decidiu-se revogá-la e retomar o debate. Estamos, há quase um ano, trabalhando na nova resolução”, explica o primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Donizetti Dimer Giamberardino Filho.
Nesta entrevista ao portal Saúde Debate, Giamberardino Filho (foto abaixo – crédito CFM) lembra que a telemedicina já é uma realidade, cita alguns exemplos e benefícios deste tipo de serviço, além de destacar a necessidade de sua regulamentação. De acordo com ele, a telemedicina não deve levar à substituição de mão de obra de profissionais como forma de economia, e sim uma maneira de assegurar um maior acesso à saúde.
A resolução do CFM deverá vedar, por exemplo, que o primeiro atendimento a qualquer paciente seja feito de maneira remota, mas as consultas de retorno e de acompanhamento possam ser feitas por meio da telemedicina.
Saúde Debate – Qual a importância de reabrir este edital e o que vai acontecer após o prazo para as contribuições das entidades para a resolução sobre a telemedicina?
Donizetti Dimer Giamberardino Filho – Logo após a revogação dessa resolução, no ano passado, foi aberto o prazo e constituída uma comissão de análise. Esse procedimento foi aberto para discutir o tema frente à necessidade porque a telemedicina já está presente na nossa sociedade. E você tem que fazer uma regulação desse fato dentro dos conceitos da boa prática médica. Abrimos um novo prazo para uma nova discussão, com todas as sociedades de especialidades e com todos os Conselhos Regionais de Medicina, para que possamos ter um consenso neste regramento.
Saúde Debate – Quais são as principais discussões a respeito da telemedicina?
Giamberardino Filho – Alguns princípios são necessários. Primeiro é colocar que a telemedicina é mais uma maneira contemporânea de poder melhorar o acesso para as pessoas à saúde. Ela serve principalmente para isso. Não veio e não deve vir para substituir mão de obra ou tirar emprego de ninguém. Ela deve vir para complementar as resoluções das dificuldades que um sistema de saúde tem.
O uso da telemedicina é restrito a uma consciência entre o médico que vai prestar e o consulente. Em outras palavras, ele só deve ser feito com autorização, com permissão do paciente. É desse paciente, sujeito de direitos, querer ser atendido por telemedicina. Da mesma forma, o médico, como o sujeito de direito, também atendê-lo desta forma.
A partir destes dois sentimentos, partimos para o que é preconizado: prioritariamente deve haver médico nas duas pontas do serviço. Você consegue um médico com mais experiência e mais conhecimento que passar para o outro profissional. As situações do atendimento direto a distância com o seu paciente são exceções. Isso vai ficar limitado. Isso vai ser discutido também, lógico. Mas, provavelmente, virá mais em segmentos. Por exemplo: um paciente que foi visto duas ou três vezes por aquele profissional, o médico poderá conversar para ver como o indivíduo está passando com a medicação feita.
Saúde Debate – O que não pode ser esquecido nesta discussão?
Giamberardino Filho – Está muito claro que a atividade médica é uma atividade profissional baseada em uma relação interpessoal. O conhecimento médico não compõe 100% da influência no resultado do tratamento. A relação médico-paciente é algo muito importante e muito valioso. Ela tem a mesma dimensão – ou até mais – da medicação prescrita. E só é possível estabelecer essa relação médico-paciente, a partir de um contato direto e da conquista da confiança. Portanto, qualquer resolução de telemedicina deve ter muito claro que o valor “ouro” ainda está no atendimento médico presencial.
Saúde Debate – O que acontece na prática para que o Conselho queira rever a resolução atual sobre a telemedicina, resolução que é de 2002? Qual é o contexto atual?
Giamberardino Filho – Os meios de comunicação de 2002, que é a época da última resolução em vigor, mudaram muito. As pessoas mudaram muito. Há um imediatismo maior. Todo atendimento médico exige uma privacidade, exige sigilo. Então, os mecanismos de telemedicina precisam ser regulados por plataformas que tenham segurança e confidencialidade. Você não pode permitir que os seus dados clínicos caiam em um banco de dados que você não desejou e que isso possa ser usado pelo mercado, indistintamente.
Por isso, a necessidade do cuidado e de que as pessoas que forem praticar a telemedicina tenham consciência da importância que isso aconteça em plataformas que tenham segurança. Por sinal, está vindo uma legislação que vai entrar em vigor na metade desse ano sobre a privacidade de dados (Lei Geral de Proteção de Dados), reforçando ainda mais preocupação com o cuidado desses dados.
Nossa preocupação com a privacidade e confidencialidade com a relação médico-paciente é imensa; no entanto, vai além. Entendemos que a telemedicina tem que vir não para baratear custos, mas sim para facilitar acessos. Um exemplo é o de um paciente que mora em Foz do Iguaçu (PR) e tem que se deslocar até o Hospital de Clínicas em Curitiba (PR), só para trocar uma receita. Não faz sentido essa pessoa viajar 700 quilômetros para isso. Lógico que a pessoa não pode ficar apenas consultando a distância, mas talvez vindo uma vez ao ano, isso já seja suficiente. E durante esse intervalo de tempo, ela consiga ser acompanhada a distância. Por isso, afirmamos a telemedicina é uma ferramenta, para ajudar ainda mais o sistema de saúde. Não é para substituir profissionais.
Saúde Debate – A telemedicina serve de apoio em diferentes níveis de atendimento à saúde?
Giamberardino Filho – Já existem muitas situações. Há 20 anos, por exemplo, muitas unidades de saúde UPA (Unidade de Pronto Atendimento) contam com um serviço de eletrocardiograma a distância, no qual o laudo sai a distância. Esse já é um serviço de telemedicina. A regulação de que tipo de ambulância vai para o acidente é uma regulação por telemedicina, e é uma decisão importantíssima. A Central de Leitos determina qual o leito vai para o paciente por telemedicina. Tudo isso acelera processos, otimiza recursos. Imagine mandar um determinado paciente que tem uma doença mais grave para um hospital de poucos recursos, isso está prejudicando aquele paciente, está atrasando oportunidades para ele.
Existem muitos exemplos dessa natureza. São esses problemas que podem ser bastante minimizados pela telemedicina. Uma das vantagens será a possibilidade de propiciar a implementação de centros que tenham bastante conhecimento, como centros universitários, para que se consiga fazer redes nas quais os problemas possam ser discutidos entre equipes médicas a distância, economizando tempo e recursos, como transportes desnecessários, por exemplo. A nossa tecnologia permite isso hoje. A questão é facilitar o acesso. É lógico que nas emergências, nas urgências, tudo é válido, mas nós não podemos transformar as exceções na regularidade das situações.
Saúde Debate – É uma situação diferente do uso de inteligência artificial quando um paciente está procurando por atendimento em uma operadora?
Giamberardino Filho – Sim. E certas questões você não vai poder impedir, pois são avanços tecnológicos. Mas esse exemplo é de triagem, e não atendimento por telemedicina. A inteligência faz triagem, faz um screening para facilitar o diagnóstico. Isso pode ser feito. O que é não desejável, por exemplo, é se colocar numa ponta médicos com uma qualificação mais simples para baratear o custo e na outra, outros na retaguarda. Isso não acho certo. E não tem nada a ver com corporativismo. Não acho certo, porque há a chance de erro. E de que esse erro seja maior, porque o profissional que não tem experiência, às vezes, nem consegue perceber o que deve ser transmitido.
Hoje já existem atividades de telemedicina, entre serviços. É comum, por exemplo, uma Unidade de Terapia Intensiva numa cidade de menor porte, em uma situação de um doente muito grave, discutir esse caso com uma UTI de um hospital universitário. Isso pode ser ampliado e a partir de situações assim pode-se pensar em qualificação de rede. Na medida em que a rede vai consultando centros de referência, pode-se estabelecer protocolos.
Saúde Debate – Existem exemplos em outros países que também podem ser trazidos para o Brasil e que podem, assim, contribuir nesta discussão e na elaboração da resolução?
Giamberardino Filho – A Organização Mundial de Saúde, em outubro de 2018, fez um texto com princípios da telemedicina. São norteadores do cenário mundial, e não é uma questão restritiva. Vejo que a própria telemedicina tem bons exemplos em cada situação.
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