“Pandemia da Covid-19 é uma das mais complexas catástrofes de todos os tempos”, diz economista José Pio Martins

    O novo coronavírus forçou a adoção de medidas que mexeram diretamente com a rotina da população, especialmente o isolamento social, e isto gerou uma “avalanche” sobre a economia. As empresas foram obrigadas a enviar os funcionários para casa e implantar o regime de teletrabalho – também chamado como home office – como medida de proteção. Apenas as atividades essenciais continuaram funcionando, em um primeiro momento.

    Os resultados foram fechamento de empresas, demissões, adesão às medidas anunciadas pelo governo federal de redução de jornada de trabalho e salário. Uma significativa parcela da população, formada por autônomos, prestadores de serviços e informais, teve que recorrer ao auxílio emergencial de R$ 600 e a outros incentivos para sobreviver em um momento de economia praticamente parada. Além disto, governos em diferentes esferas anunciaram perdas na arrecadação diante da retração econômica. 

     

    Aos poucos, alguns setores da economia, antes fechados, retomam as atividades. Estas empresas adotam medidas, como o distanciamento entre funcionários, parte do quadro trabalhando de casa, oferta de álcool em gel para clientes e acesso controlado de consumidores nos estabelecimentos. Entretanto, ainda existem restrições, especialmente para segmentos onde geram grande concentração de pessoas e que não são classificados como essenciais. 

    O economista e reitor da Universidade Positivo, de Curitiba (PR), professor José Pio Martins, considera a pandemia da Covid-19 como uma das mais complexas catástrofes de todos os tempos. “Mesmo em períodos de guerras ou de depressões econômicas, os empresários, os trabalhadores e os prestadores de serviços não estavam impedidos de ir a suas fábricas, escritórios e lojas comerciais, a não ser por dificuldades localizadas de transporte e outras. Na crise atual, o isolamento foi a forma encontrada pela humanidade para enfrentar a pandemia, o que significou um freio no sistema e redução da produção, com a demolição da renda de parte da população”, afirma.

    De acordo com Martins, apesar da gravidade, o mundo já passou por situações similares. No entanto, a crise da Covid-19 tem particularidades. “O mundo já enfrentou catástrofes naturais e catástrofes produzidas pelas mãos humanas de proporções alarmantes: a peste negra que, no século 14 e 15 dizimou metade da população da Europa; a gripe espanhola nos anos 1918-1920, que teria matado 50 milhões de pessoas no mundo; as duas grandes guerras mundiais; as grandes fomes da Ucrânia e da China; os terremotos; os tsunamis. Enfim, a humanidade já experimentou tragédias de proporções gigantescas. Mas, a atual pandemia da Covid-19 tem um aspecto peculiar: o número de mortos entrará para a história como sendo bem menor que outras catástrofes – como a peste negra e a gripe espanhola -, mas será a catástrofe que terá feito o maior estrago na economia, na produção mundial, na renda das pessoas, com uma consequente redução do bem-estar social médio muito forte. Esse é o principal fenômeno, ainda que a perda de vidas seja o efeito mais lamentável sempre”, avalia.

    Os impactos na economia estão ligados diretamente com o isolamento social da população. E, desde que medidas neste sentido foram implantadas, houve questionamentos por segmentos da sociedade em função dos efeitos no setor econômico. “O isolamento social foi entendido inicialmente como uma necessidade. Uma vez executado, o principal efeito sobre a economia foi a redução do Produto Interno Bruto (PIB), mas a questão é que não foi uma redução qualquer: foi uma paradeira geral na máquina econômica nacional que produz. A devastação na renda das pessoas, em muitos casos levando ao desespero, já se fez sentir e foi grande demais. Esse é o principal aspecto. Sempre cito alguns exemplos óbvios, mas pouco percebidos. Uma premissa falsa nessa crise foi a discussão entre parar ou trabalhar. Se todos os habitantes parassem, cedo não haveria fornecimento de energia, água, gás, medicamentos e comida. Não existe como todos pararem e, ainda assim, os bens e serviços mínimos à vida continuarem chegando até as famílias”, comenta Martins.

    O economista complementa: “A economia só existe porque há seres humanos com necessidades vitais (das quais a vida depende), a começar pelas mais óbvias: alimento, abrigo e repouso. E quem produz os produtos para satisfazer essas necessidades são as mesmas pessoas que vão consumi-los. Quando um animal nasce na natureza, a mãe, o pai ou o próprio filhote têm que sair em busca de alimentos; se ninguém fizer isso, todos morrem. Como o instinto da sobrevivência é um traço dos animais, racionais ou não, eles saem à busca dos meios para sua sobrevivência mesmo sob condição de risco. A economia nada mais é do que um sistema para prover os bens e serviços capazes de atender às necessidades múltiplas dos seres humanos, pela transformação dos recursos da natureza (que são escassos). Mesmo nas tragédias humanitárias de altas proporções, com todos os riscos diante de si as pessoas saíam desesperadas atrás de meios de sobrevivência, principalmente atrás de alimentos para matar a fome. O isolamento somente funciona enquanto, de alguma forma, chegar o leite, o pão, a energia e a comida na mesa das pessoas”.

    A crise gerada pelo coronavírus causou, socialmente, uma percepção em parte da população de que é possível viver com menos, ou pelo menos diferente do que era no período pré-pandemia. Houve também um movimento de incentivo às compras do empresário e do empreendedor local, para uma participação diferente na cadeia de consumo. Uma forma de ajudar quem estaria em dificuldade neste momento e não teria condições de aguentar o “repuxo” sozinho, ao contrário de grandes organizações.

    Para Martins, a crise vai deixar lições na área econômica. “O maior aprendizado dessa crise é que, primeiro, a população somente consome o que ela mesma produz. Em segundo lugar, a humanidade tem que arrumar meios para que uma parte da população siga trabalhando, com todos os cuidados possíveis, a fim de garantir a sobrevivência de todos”, explica.

    “A economia pode ser compreendida por uma criança quando o significado dos fatos reais por trás das teorias lhe são ensinados. Imagine o que o mundo faz para eu ter meu café da manhã. De onde vêm o leite, o pão, o queijo, a manteiga, o garfo, a faca, a xícara, a toalha, o fogão, a água, a energia? Se eu mostrar para uma criança quantas operações o mundo tem que executar para um simples litro de leite chegar até a minha mesa de refeição matutina, ela entenderá que um país não pode parar inteiramente. Eu sempre explico para as crianças o percurso de um litro de leite saindo da geladeira, voltando ao supermercado, explico como surge um supermercado, depois o leite retornando ao caminhão que o transportou desde a indústria, falo como é fabricado um caminhão, como é feita a rodovia, chego até fábrica de laticínios e explico a complexidade para processar o leite in natura e vou até chegar à vaca em algum estábulo de uma fazenda, tudo para dizer: economia é isso”, comenta Martins.

    Para o economista, existe a necessidade de uma análise mais profunda sobre a economia neste momento de enfrentamento ao novo coronavírus. “Quem olhar as notícias e os debates em redes sociais verá pessoas cultas dizendo que ir ao trabalho e seguir produzindo é privilegiar o dinheiro em vez da vida, é correr o risco de morrer para dar lucro aos empresários. O isolamento social é eficaz para conter o contágio, isso é verdade. Mas o grande aprendizado é entender que a economia não pode parar totalmente, se parar, nós perecemos”, opina.

    O comportamento da economia ao isolamento social e ao retorno gradativo à rotina, além do que o sistema produtivo vai aproveitar das adaptações do período da pandemia (como a maior adesão ao teletrabalho e às ferramentas tecnológicas), é uma resposta que será respondida efetivamente daqui a algum tempo. E, assim como nas áreas histórica e social, algo que será construído dia a dia pela atual sociedade.