A odontologia é uma ciência da saúde, mas também uma profissão que exige equilíbrio entre técnica, ética e relacionamento interpessoal. A confiança entre dentista e paciente é essencial para que um tratamento seja bem-sucedido, mas nem sempre essa relação se mantém harmoniosa. A maneira correta de agir quando o paciente não colabora, desrespeita as orientações ou torna o ambiente de atendimento insustentável é uma dúvida comum entre os profissionais. O dentista pode, e deve, interromper esse atendimento em determinadas situações, desde que respeite as normas estabelecidas pelo Código de Ética Odontológica (CEO). Essa prerrogativa, porém, não significa abandonar o paciente de qualquer forma, mas sim garantir que a decisão seja tomada de maneira responsável e ética.
A odontologia não pode ser tratada como um comércio em que o profissional é obrigado a atender qualquer paciente a qualquer custo. O CEO deixa claro que o dentista tem o direito de renunciar ao atendimento quando houver fatores que prejudiquem sua atuação profissional ou o relacionamento com o paciente, isso pode acontecer em casos de desrespeito, ameaças, recusa sistemática às recomendações clínicas ou até mesmo situações que coloquem a integridade do profissional em risco. Afinal, ninguém deve ser forçado a trabalhar em condições adversas que comprometam a qualidade do atendimento.
Entretanto, a renúncia ao atendimento não pode ser uma decisão impulsiva. O profissional tem a obrigação de comunicar formalmente o paciente sobre sua decisão e garantir que ele não fique desassistido, isso inclui oferecer um tempo razoável para que ele encontre outro profissional e fornecer toda a documentação necessária para a continuidade do tratamento. É aqui que entra a importância do prontuário odontológico, mais do que um simples registro de consultas, ele é um verdadeiro dossiê do paciente, reunindo exames, diagnósticos, evoluções e procedimentos realizados. Sem um prontuário bem estruturado, tanto o paciente quanto o dentista ficam vulneráveis a problemas futuros.
Há, porém, limites para essa renúncia. Se o paciente estiver em uma situação de urgência ou emergência, o profissional tem a obrigação de prestar atendimento até que a condição seja estabilizada. Esse princípio reforça que, embora o dentista tenha direitos, a prioridade sempre será a saúde do paciente. Nesses casos, não há espaço para preferências pessoais ou conflitos interpessoais: a ética da profissão exige que a assistência seja garantida até que um outro profissional possa assumir o tratamento.
Muitos dentistas, por desconhecimento ou receio de processos, acabam aceitando continuar atendimentos que se tornaram insustentáveis. Isso não apenas compromete a saúde mental do profissional, mas também a qualidade da assistência prestada. O medo de que a renúncia seja interpretada como abandono leva muitos a permanecerem em relações profissionais tóxicas, prejudiciais tanto para eles quanto para os próprios pacientes. O que se vê, então, é um desgaste desnecessário que poderia ser evitado com informação e aplicação correta das normas éticas.
Para evitar complicações, a formalização da decisão é essencial. Registrar a comunicação por escrito, arquivar toda a documentação com rigor e manter um prontuário impecável são atitudes que garantem segurança ao profissional. Em tempos de judicialização crescente na odontologia, proteger-se juridicamente não é apenas uma precaução, mas uma necessidade, e isso não significa apenas evitar problemas legais, mas sim garantir que a odontologia seja exercida com responsabilidade, sem medo de tomar as decisões corretas.
A odontologia exige do profissional muito mais do que habilidade técnica. É preciso também conhecer as diretrizes éticas e legais que regem a profissão para atuar com segurança e tranquilidade, renunciar ao atendimento de um paciente não é uma falha profissional, muito menos um ato de negligência, mas sim um direito do dentista quando há justificativa legítima e quando os procedimentos adequados são seguidos. O importante é que essa decisão nunca seja feita de forma precipitada ou sem um olhar cuidadoso para a continuidade do tratamento do paciente.
*Ana Falcão Gierlich é advogada, membro da Comissão de Direito da Saúde da OAB SP, especialista em Direito Médico e Bioética pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar por meio da Escola Paulista de Direito e Mestranda em Direito Médico e Odontológico na São Leopoldo Mandic
Atenção! A responsabilidade do conteúdo é do autor do artigo, enviado para a equipe do Saúde Debate. O artigo não representa necessariamente a opinião do portal, que tem a missão de levar informações plurais sobre a área da saúde.