Em agosto, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vista e suspendeu o julgamento que discute critérios para abertura de novos cursos privados de medicina. Um dos temas controversos no universo da saúde brasileira: de um lado alega-se que existe a necessidade da formação de médicos que atuem em cidades mais distantes das capitais. De outro, estão os conselhos médicos que são contrários a novos cursos, em razão da necessidade de controlar a qualidade na formação de novos profissionais. Não é demais lembrar que há muitos interesses econômicos envolvendo a abertura de novos cursos particulares. Enfim, mais um dilema brasileiro que foi parar nas Cortes Superiores do Judiciário.
A discussão no Supremo é sobre um dispositivo da lei do Programa Mais Médicos que condiciona a criação de novas graduações a um chamamento público que direciona os cursos a determinados municípios, com base em critérios dos ministérios da Saúde e da Educação. Esse dispositivo é questionado pela Associação Nacional das Universidades Particulares que discute se é constitucional a previsão de requisitos para a abertura de novos cursos na área.
O relator, Gilmar Mendes, discordou do argumento e votou para validar a regra do Mais Médicos. Na visão do ministro, a sistemática do chamamento público é adequada para a estruturação de políticas públicas. O ministro também determinou que devem ser suspensos os processos administrativos para criação de novos cursos que ainda não passaram da primeira etapa de análise dos documentos. No caso daqueles que já superaram essa fase, Gilmar apontou que a análise técnica deverá observar se os municípios que receberão a oferta de vagas cumprem as exigências do programa. Os cursos de medicina já instalados deverão ser mantidos, de acordo com o ministro.
O ministro Edson Fachin divergiu em seu voto e ponderou que a manutenção dos processos administrativos em curso sem chamamento público esvaziará o interesse de instituições a se submeter aos requisitos do Mais Médicos, cujo objetivo é reduzir desigualdades na área de saúde. Os dois ministros só discordaram em um ponto: a continuidade dos processos pendentes que pedem autorização para abertura de novo curso de medicina. Para Gilmar, essas ações devem continuar tramitando. Fachin entende que todos os processos devem ser suspensos. Enfim, por enquanto, sem definição.
Apontam os números divulgados pelo CFM que existem 389 escolas médicas em atividade no Brasil, distribuídas em quase 250 municípios, as quais, juntas, oferecem cerca de 40 mil vagas por ano. Desse total de cursos, 42,9% (167) foram criados nos últimos dez anos, sendo que 53,4% (208) estão no Sul e no Sudeste e 81,1% (315) em capitais e municípios de grande porte.
Levantamento do CFM aponta que mais de 90% dessas instituições de ensino estão em municípios com déficit em parâmetros considerados essenciais para o funcionamento dos cursos. Ou seja, são localidades que não contam com número suficiente de leitos de internação, de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) ou hospitais de ensino, entre outros itens.
Vale contextualizar que o Brasil teve um salto, nos últimos anos, no número de médicos e hoje cerca de 545,4 mil profissionais estão em atividade no país. Ou seja, são 2,56 profissionais para cada mil habitantes. Um bom número que aproxima o Brasil de índices de outros países, como os Estados Unidos.
O aumento no número de médicos acompanhou o crescimento de escolas médicas e de vagas na última década. Em 2010, a proporção de médicos por mil habitantes era de 1,76 e havia 343,7 mil registros de médicos no país – em 2022, os registros subiram para quase 600 mil (há médico que faz mais de um registro para atuar em estados diferentes). De acordo com o CFM, como os médicos têm uma vida profissional longa (cerca de 43 anos), alguns estudos já estimam que o Brasil deve alcançar quase 837 mil médicos em cinco anos.
Entretanto, o mesmo estudo confirma a desigualdade na distribuição e na fixação de médicos pelo Brasil: mais de 290 mil médicos estão concentrados nas capitais, atendendo a 24% da população brasileira. Entre as regiões, o Norte é a mais deficitária.
Segundo o levantamento, 62% dos médicos do país atuam nas 49 cidades que possuem mais de 500 mil habitantes. Juntas, elas concentram 32% da população brasileira. Já cerca de 205,5 mil médicos atendem nos outros 5.521 municípios do país ou 68% da população brasileira. Nos 4.890 municípios com até 50 mil habitantes, estão pouco mais de 8% dos profissionais (cerca de 42 mil médicos). Nesses locais, moram 65,8 milhões de pessoas. Em 1.250 municípios menores (de até 5 mil habitantes), há 0,45 médicos para cada mil habitantes.
No recorte do estudo, um número revelador: as 27 capitais brasileiras reúnem 54% dos médicos – uma média de 6,21 médicos por mil habitantes. Já no interior estão 46% dos médicos – 1,72 profissional para cada mil habitantes.
Entre as regiões, de acordo com o CFM, o Sudeste, concentra 58% dos médicos – 3,22 para cada mil habitantes. No Sul, estão 15,7% dos médicos – 2,82/mil habitantes. No Nordeste, estão 18,5% dos médicos – 1,75/mil habitantes. No Centro-Oeste, estão 8,4% dos médicos – 2,74/mil habitantes. E no Norte, estão 4,6% dos médicos – 1,34/mil habitantes.
São diversas as questões que são responsáveis por essa desigualdade na distribuição de profissionais pelo país. A principal é a falta de uma política pública de incentivo à saúde e aos médicos atuarem no interior e em pequenas cidades. Falta infraestrutura, leitos, equipamentos, medicamentos, acesso a exames, entre outros problemas.
A retomada do Mais Médicos nesse Governo Federal pode até ser um caminho para reduzir as carências e diferenças regionais, mas seria importante que médicos fossem avaliados por um exame semelhante à prova de Exame de Ordem dos Advogados, antes de atuarem em campo.
Atualmente, há o Revalida, Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira. O seu objetivo é avaliar habilidades, competências e conhecimentos necessários para o exercício profissional adequado aos princípios e necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Médicos brasileiros formados em Venezuela, Bolívia, Cuba e Paraguai têm o maior percentual de reprovação na primeira fase do Revalida, prova que reconhece a formação estrangeira para atuação de médicos no Brasil. O levantamento foi feito pela Faculdade de Medicina da USP e pela Associação Médica Brasileira, em complemento ao estudo Demografia Médica no Brasil, do CFM.
A média geral de reprovação foi de 87,3% e mostra um cenário curioso: 84% dos brasileiros que tentaram a primeira etapa do Revalida em 2023 se formaram na Bolívia (44,8% do total) e no Paraguai (39,1%), países que não fazem vestibular para acesso e cobram mensalidades mais baixas. No Brasil cursar Medicina pode custar mais de R$ 10 mil por mês, faculdades na Bolívia, por exemplo, cobram a partir de R$ 700 de um brasileiro. Outro dado relevante é que dos 6.917 brasileiros que fizeram a primeira etapa do Revalida, 6.052 foram eliminados (87,5%). Já entre os estrangeiros, foram 2.265 candidatos, com 1.961 reprovados (86,6%).
Há Projetos de Lei, ainda em análise pelos congressistas, com a proposta de que, para exercer a profissão no Brasil, os médicos terão de ser aprovados em um exame nacional de suficiência em medicina, com provas teórica e prática. Mas, ainda não foi aprovado o texto.
Em 2018, o próprio CREMESP divulgou dados no sentido de que 7 entre cada 10 médicos não sabe identificar um infarto e não apenas esses dados chamaram atenção. Também é necessário verificar o aumento crescente da Judicialização da Medicina, com processos por má prática médica, não apenas em face de médicos recém-formados, evidente, mas, se não houver critérios mínimos para novas faculdades serem abertas, o futuro não será promissor para os novos profissionais tampouco para os pacientes.
A discussão em torno dessas questões é complexa e envolve não envolve apenas aspectos legais, mas também políticas de saúde pública e educação médica. A busca por equilibrar o acesso à saúde em todo o país e a qualidade da formação médica é um desafio constante, com implicações significativas para a população brasileira. A reflexão que fica é: precisamos mesmo de mais escolas médicas?
*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018
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