O SUS e sua relação com o rol de procedimentos da ANS

No ano que a Lei que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) completa 30 anos, muitos são os desafios e debates em torno do maior sistema de saúde pública do mundo. Dentre os temas em discussão está a relação do SUS com o mercado privado de planos de saúde, este último responsável por 48 milhões de brasileiros que fugiram da rede pública, em grande parte, por sua ineficiência.

A questão nos intriga porque há necessidade de compreender qual a extensão da responsabilidade deste mercado privado de saúde, diante da obrigação universal de cobertura do SUS. O debate novamente chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) visando consolidar a questão sobre a taxatividade ou não do rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS.

O SUS existe para todos os brasileiros e estrangeiros que estejam no país, assegurando a cobertura universal para todos os eventos em saúde. Segundo o texto constitucional, não caberia ao SUS qualquer discussão sobre limitação de meios necessários ao atendimento da população, incumbindo ao Estado primariamente esta obrigação.

Certamente o legislador constituinte originário sabia que o SUS não conseguiria sozinho atender a toda a população, seria necessário apoio da iniciativa privada e, por isto, a constituição prevê que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Temos desta forma que o responsável primário (Estado) autorize a iniciativa privada a também atuar prestando serviços de saúde a população. Neste contexto, onde o Estado não alcança, o privado ocupa o espaço.

Com a regulamentação do mercado e criação da ANS, o legislador compreendeu que seria necessário registrar o que seria a base mínima para a cobertura de qualquer contrato, portanto, determinou a criação de uma agência reguladora e fixou competência para que esta produzisse uma lista de procedimentos e eventos capazes de atendera a todas as enfermidades catalogadas no código internacional de doenças. O legislador ainda registrou que os atendimentos prestados pelo SUS, aos beneficiários de planos de saúde, que estejam relacionados nesta lista, devem ser ressarcidos ao SUS em valor superior a tabela do mesmo.

Sendo assim, fica muito claro que o Estado, responsável primário pela prestação do serviço de saúde, concede autorização para o privado explorar o serviço de saúde, desonerando-se financeiramente da obrigação para aqueles eventos que ele próprio Estado (por meio da ANS) registra ser de cobertura das operadoras.

Pois bem, do ponto de vista da legalidade, os 48 milhões de brasileiros vinculados a planos privados de assistência à saúde desoneram o SUS para aqueles eventos e procedimentos previstos no rol da ANS. Mas e o que não está previsto? O que não está previsto é de responsabilidade do SUS.

Na teoria tudo parece muito simples, na prática, nem tanto. A realidade do SUS, com seus problemas históricos, produz decisões judiciais que estendem a obrigação do mercado privado, para aquilo que não está previsto no rol.

A questão divide as 3ª e 4ª turmas do STJ. A primeira compreende que o rol produzido pela ANS seria o mínimo e diante do princípio do direito à vida e de princípios basilares do direito do consumidor, não caberia a operadora de planos de saúde limitar o acesso do beneficiário/paciente ao tratamento médico adequado a salvaguarda de sua incolumidade.

De outro lado, a 4ª turma compreende exatamente pela taxatividade do rol, considerando a legalidade do contrato firmado, e ainda, entendendo pelo mutualismo do contrato, ou seja, a necessidade de previsibilidade contratual, e o fato de que o conjunto de beneficiários nele inscrito é o responsável por assegurar a cobertura médica uns dos outros.

Para ambas as posições existem justificativas jurisprudenciais e doutrinárias, mas na base de tudo isto, em verdade, está discussão de uma política pública para a saúde que está umbilicalmente ligada ao SUS.

A questão em discussão no judiciário, poderá impactar diretamente na sustentabilidade do setor, que terá que se reinventar a depender a decisão que será tomada, o que trará efeitos diretos ao SUS seja por sua absoluta desoneração sobre os beneficiários de planos privados , seja pela consolidação de sua responsabilidade para aquilo que não estiver previsto pelo rol.

A extensão do rol importará na ausência de previsibilidade dos contratos e, isto porque, qualquer produto ou procedimento aprovado pela ANVISA ou reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina estariam aptos a cobertura contratual, o que possivelmente limitará ainda mais o quantitativo de pessoas vinculadas a contratos de planos de saúde diante do aumento do valor de mensalidades, ou seja, mais pacientes para o SUS.

De outro lado, a limitação do rol obrigará o SUS a ser o SUS. Ou seja, a cumprir seu papel constitucional e legal em assegurar a população o atendimento necessário àquilo que não está previsto no rol. Como ponderar esses valores e decisões diante de um SUS com problemas até para a atenção básica à saúde? Essa resposta – tão aguardada e que assegurará a efetiva estabilidade das decisões judiciais – deverá ser respondida, em breve, pelo STJ. Isso certamente mudará o curso de todo o sistema de saúde no país. Bom ou ruim, teremos uma decisão definitiva que impacta diretamente na estratégia pública de saúde e na organização dos planos privados.

* Bruno Marcelos é advogado, com pós-graduação em Direito Médico pela Uerj e pós-graduação em Direito Administrativo pela Emerj

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