O luto não reconhecido

Desde criança convivi com animais de estimação, em sua maior parte cachorros. Não lembro de um só período em que não havia ao menos um cãozinho em casa. Muitas vezes dois, algumas vezes três.

Uns mais dóceis, outros mais hostis. Tanto que por duas vezes fui alvo da ira de um deles. Cresci, e do final da adolescência até início da fase adulta evitei contato com eles, acredito que por conta das experiências traumáticas vividas, me deixando algumas boas cicatrizes pelo corpo.

Nessa época, nunca fui de muita simpatia para com os gatos. Até que um belo dia, um deles cruzou o meu caminho e tivemos uma relação muito intensa por muito tempo. Circunstâncias da vida nos separaram e cada um seguiu seu caminho.

O tempo passou e, de novo, outro deles cruzou meu caminho. Foi amor à primeira vista. Era um bebê amarelo com branco lindo, conquistava todos a sua volta e ele escolheu a mim. Passamos ótimos momentos juntos, partilhamos o sofá, a cama, a poltrona. Víamos televisão, ouvíamos música. Enquanto eu lia, ele dormia sobre minhas pernas. Nas horas de trabalho ou estudo, ele vinha verificar o que eu estava fazendo, reivindicando atenção.

Até que uma fatalidade nos separou. No auge da sua plena e saudável vida, prestes a completar 5 anos, ele foi, repentinamente, fazer parte de algum outro plano. A dor foi tamanha. Indescritível. Dilacerante. E vieram os questionamentos: Por que tão cedo? Por que com ele? Não houve tempo para despedida,.

Mesmo que seus últimos instantes tenham sido em meus braços, havia ainda uma esperança de que ficasse tudo bem e ele voltasse pra casa. Em pensamento, transmiti o que em atitudes eu demonstrava em nossa convivência: meu sincero e profundo amor.

Na elaboração do meu luto, tive a sorte de ter pessoas sensíveis ao meu lado, familiares e amigos, que compreenderam minha dor, que foram solícitos ao meu sentimento de perda, que reconheceram o meu sofrimento, pois ele é genuíno e se assemelha a perda de qualquer ente querido, afinal os anos de convivência tornam esses animaizinhos parte da família.

Porém há pessoas que não tem essa sorte, que não tem a sua dor acolhida e seu sofrimento acalentado, seu luto não é validado, não é reconhecido. E a expressão de sua dor é vista muitas vezes com chacota, afinal era só um “bichinho”.

Não podemos não ir trabalhar no dia seguinte à morte do nosso animal de estimação, não há lei que assegure dias de afastamento do trabalho ou dos estudos por conta desse tipo de perda. O choro estendido por dias muitas vezes não é compreendido e seguem-se frases como: “ah era só um gatinho ou um cachorrinho”. “Logo você arruma outro”. Não! Não era “só” isso! Era um membro daquela família. Que fazia parte da rotina, dos programas e da vida daquele grupo familiar. E que a partir daquele momento não faz mais parte e tudo muda de uma hora pra outra.

Restam, além dos seus pertences: potinhos de água e comida, roupinhas, caminhas, arranhadores, brinquedos variados, o vazio e a saudades. E é preciso tempo para que tudo isso se assente dentro de nós.

Esse é apenas um exemplo de luto não reconhecido em nossa sociedade. Outros, como a perda gestacional, o rompimento de um relacionamento, perda do emprego e até mesmo a chegada da aposentadoria, podem trazer sentimentos e sofrimentos comparáveis à morte de um ente querido, gerando os mesmos sentimentos e sofrimento do luto considerado “normal” e aceito, embora não sejam igualmente reconhecidos e validados. Em muitas situações, as pessoas sequer podem realizar um ritual de despedida, fator que ajuda simbolicamente na elaboração da perda.

O luto não reconhecido, termo cunhado por Kenneth Doka, é uma perda que não pode ser aceita socialmente, abertamente reconhecida ou ter seu luto vivido publicamente. Além da dor do luto, o enlutado não é visto com empatia, e não tem o suporte necessário para seu enfrentamento, e para passar pelos altos e baixos típicos do processo e evoluir, podendo, inclusive, passar a vivenciar um luto complicado.

Diante disso, é imprescindível que possamos sempre reconhecer a dor do outro como legítima, independente da perda a qual esteja vivenciando. Perda é perda, só quem a sente sabe a dor de ter um vínculo interrompido, uma expectativa desfeita. Só quem sente pode mensurá-la.

Que possamos ser mais empáticos e solidários frente a um sofrimento que é único e subjetivo, seja ele qual for.

A nós outros não cabe julgamentos. Acolhimento é o faz a diferença no caminho de quem já está tão sofrido e fragilizado, tentando elaborar seu processo de luto da maneira mais saudável possível, e muitas vezes de forma solitária.

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