Nos últimos dias vivenciamos uma grande polêmica acerca da resolução 2.227/2018 emitida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), a da telemedicina. Não é assunto novo, mas se requentou quando o CFM resolveu atualizar a resolução em vigor, que data de 2002. Por grande participação e questionamentos da classe médica, seja individualmente por meio das redes sociais, ou de forma institucionalizada pelas sociedades de especialidades, associações, conselhos regionais e sindicatos médicos, a resolução foi revogada. Porém o espírito de se modernizar a resolução vigente continua, preparando a Medicina aos avanços na área. Mesmo que deslocado no tempo, pois deveria preceder qualquer texto público, um grande debate está acontecendo, o que é extremamente salutar e construtivo.
A telemedicina, como instrumento e ferramenta tecnológica para aproximar e auxiliar na atenção à saúde e na relação médico paciente é uma realidade. A utilização de aplicativos multiplataforma para se comunicar por meio de texto, áudio, enviar exames ou até fotos a um médico é uma rotina, especialmente em algumas especialidades. Da mesma forma, é comum a troca de informações entre médicos, verificando-se verdadeiras juntas médicas virtuais, com potencial ganho de qualidade na realização de um diagnóstico difícil ou uma terapêutica mais elaborada. Entretanto, tudo precisa ser feito fora da informalidade e com maiores garantias do cumprimento de preceitos bioéticos básicos, como o sigilo das informações.
Negar o uso da tecnologia é negar o avanço da sociedade, mas não podemos cair na tentação de que ela responda a todos os nossos anseios. Pelo menos, não por enquanto. Por ser muito amplo o campo de debate, trago uma simples reflexão como ponto de partida.
Uma consulta médica compreende a anamnese, o exame físico e a elaboração de hipóteses ou conclusões diagnósticas, solicitação de exames complementares, quando necessários, e prescrição terapêutica como ato médico completo e que pode ser concluído ou não em um único momento. Essa definição está contemplada na Resolução CFM 1.958/2010, retratando o mais puro exemplo de cuidado médico e de chance de se estabelecer uma relação de confiança entre as partes.
Nesse sentido, o termo teleconsulta utilizado na resolução que não resistiu, talvez tenha sido equivocado, pois como expresso pelo próprio CFM, uma parte da consulta é o exame físico. Analisando o texto poderíamos pensar então que a presença de um profissional de saúde ao lado do paciente examinando-o, em nome do médico a distância, supriria tal lacuna. Posso até concordar, mas com o entendimento de que a responsabilidade seja compartilhada entre pares, portanto nas duas pontas existe a necessidade de médico. Algo diferente disso descaracteriza o conceito de consulta médica.
Esses dois pontos, associado ao risco da abertura do propósito, tornando a tecnologia um meio substitutivo e não complementar, acenderam o alerta na classe médica. A grande preocupação é o emprego dessa tecnologia para banalizar e preterir o contato direto com o médico. O padrão ouro, como chamamos na Medicina, continua sendo a consulta presencial. A telemedicina, na sua faceta de consulta, deve vir para complementar um atendimento prévio ou acompanhamento de uma enfermidade crônica por um médico que já tenha tido o contato direto com o paciente.
Um preceito básico no uso dessa ferramenta e que deveria ser mais enfatizado na resolução é o seu caráter complementar e principalmente inclusivo, pois vem ao encontro das necessidades de acesso e de melhoria da qualidade no acompanhamento da saúde das pessoas. Quando falamos de acesso, não estamos falando somente de distância, mas também da dificuldade física ou logística das pessoas estarem frente a um especialista.
Na minha modesta visão houve uma abertura do escopo de atuação da telemedicina, dando a impressão de que esta seria uma modalidade corriqueira de ato médico. Dor de cabeça ? Vou fazer um call com meu médico. Talvez vejamos o nascimento de médicos que façam home office e sequer encarem um paciente de frente. Penso que, de forma sistêmica, não estamos preparados para isso, seja nos recursos humanos ou estruturalmente, mas temos que caminhar.
Por mais que a saúde seja um direito humano fundamental, é muita inocência acreditar que regras de mercado não se aplicariam a esse segmento. E este é um assunto ético ao qual o Conselho deve se debruçar, pois o trabalho dos médicos e as informações dos pacientes estão à mercê do apetite do capital. Isto também gerou desconforto e polêmica no debate da telemedicina, pois, antes de entrar em vigor, o mercado já saía na frente oferecendo soluções prontas.
Certo ou errado, o CFM teve o mérito de trazer para si um protagonismo importante, pois apresentou para o debate um assunto eticamente sensível. Caso não o fizesse, alguém o faria e talvez, como diz o ditado popular, a emenda poderia sair pior que o soneto. Independentemente dos interesses que possam estar por trás de todo esse debate, faz-se necessária uma regulamentação adaptada às necessidades da sociedade e que possa encurtar distâncias, não só no conceito de espaço, mas principalmente no acesso a uma medicina inclusiva e resolutiva. Todos só têm a ganhar com isso.