Os efeitos da pandemia do novo coronavírus extrapolam a área da saúde. Eles permeiam a sociedade como um todo, que vive e ainda vai passar por mais mudanças provocadas pela Covid-19. Isolamento social, distanciamento, ações de saúde pública, medidas econômicas, desemprego, um grande número de mortes. No entanto, ainda não é possível afirmar se as mudanças imediatas, verificadas até o momento, serão encaradas como transformações de comunidades ou da sociedade como um todo. Os impactos históricos e sociais provocados pela pandemia da Covid-19 ainda estão sendo “construídos” e analisados.
Isto porque, além da própria situação do novo coronavírus estar em andamento, existem exemplos na História, relacionados a outras pandemias, mostrando que nem sempre houve profundos impactos históricos e sociais provocados por uma pandemia. A gripe espanhola, registrada entre 1918 e 1919 e que atingiu todos os continentes, deixou entre 50 milhões e 100 milhões de mortos, segundo estimativas. Por estas características, ela tem aparecido como comparação com a pandemia do novo coronavírus.
Para Daniel Medeiros, professor de História do Colégio Positivo, de Curitiba (PR), e doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a pandemia de gripe espanhola, ao mesmo tempo, funciona e não funciona como exemplo de cenários similares ao novo coronavírus.
“É um exemplo por ser uma pandemia causada por um vírus que afetava o sistema respiratório. Por ter iniciado fora e atingido o país depois. Também é parecida porque, no princípio, as autoridades não deram a menor pelota e só depois, com o caos instalado, resolveram tomar alguma atitude. Agora, é diferente, porque a rede de saúde era precaríssima, não havia SUS e nem mesmo Ministério da Saúde. Da mesma forma não havia um órgão internacional, como a OMS, para coordenar as ações globais. O mundo estava saindo de uma guerra e havia uma desorganização brutal na Europa. Na Ásia, boa parte dos países eram colônias e eles foram intensamente afetados porque nenhuma medida pública foi tomada. Tanto é que a maior parte dos mortos é de lá e é exatamente por isso que não se sabe exatamente quantos foram, calculando-se entre 50 e 100 milhões de mortos. Outra diferença é que a gripe espanhola acabou vitimando o presidente eleito, Rodrigues Alves, que faleceu em janeiro de 1919, enquanto o nosso continua gozando de boa saúde e tripudiando sobre as vítimas”, afirma.
De acordo com Medeiros, poucos foram os reflexos deixados historicamente por outras pandemias e epidemias. Ele cita que, o século XIV, a grande peste negra foi vista como um castigo divino e não houve, de fato, um aprendizado com ela. “Mesmo a gripe espanhola, que foi relativamente rápida – no Brasil, durou cerca de dois meses – não foram capazes de criar uma consciência sanitária, médica e, principalmente, de saúde pública. Creio que a única pandemia que mudou efetivamente hábitos e culturas foi a AIDS. Eu sou da geração que foi jovem antes da AIDS. A diferença é grande, embora, com a medicação eficaz que foi desenvolvida, muitos acreditam que há uma cura (e não há!) e os jovens de hoje começam, outra vez, a se parecerem com os da minha época. O que prova que conhecimento tem de ser cultivado, senão murcha e morre”, opina.
O coronavírus acontece em um momento diferente das pandemias anteriores. Por isto, também, os impactos históricos e sociais provocados pela pandemia geram análises e até mesmo especulações. Como será o mundo pós Covid-19?
Agora, a sociedade tem a tecnologia a seu favor, auxiliando não apenas na saúde, mas no acesso à informação, por exemplo. Para Medeiros, a sociedade brasileira já sente impactos gerados pela Covid-19, em duas relações que ele considera opostas. “Por um lado, a compreensão de que as políticas públicas são importantes e que precisam existir autoridades competentes para implementá-las e que, portanto, é preciso ver o agente público mais pelo viés da competência e do comprometimento com a coisa pública do que com a ideologia. O Mandetta (Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, substituído no dia 17 de abril por Nelson Teich) é um exemplo. O cara gritou ‘Tchau, querida’ no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (uma deselegância, pra dizer o mínimo) e depois cresceu na pandemia, vestindo o colete do SUS e defendendo as autoridades de saúde até ser defenestrado”, comenta.
Segundo o professor, outro efeito da pandemia do novo coronavírus está na sensação, por parte da população em geral, de que é possível viver com menos e de maneira mais contida. “O minimalismo é uma das coisas que ganharam força com a pandemia”, enfatiza.
Medeiros também coloca o olhar sobre a solidariedade e sobre a adesão ao distanciamento e ao isolamento social, e como isso mostra o comportamento de cada um. “Por outro lado, porém, não podemos ter ilusões de que as pessoas ficaram melhores. Quem se voluntariou, quem ajudou, quem se dispôs, quem se resguardou, quem teve preocupação com o outro foi, via de regra, quem já faz isso sempre. Houve poucas adesões, poucas conversões. O Brasil foi o primeiro país (depois seguido pelos Estados Unidos) a fazer carreata para acabar com o distanciamento. E não podemos esquecer o empresário que ficou indignado com o fechamento do comércio ‘só porque morreriam 5 mil, 7 mil pessoas’. Ou seja, o mundo, do ponto de vista de consciência humanitária, sai do mesmo tamanho. Mas as ferramentas de cooperação deram um salto de qualidade”, aponta.
A sociedade que deve emergir depois da crise gerada pelo novo coronavírus, tanto no Brasil quanto no restante no mundo, é uma mais ligada pela tecnologia, na opinião do professor de História e doutor em Educação. “A tecnologia de comunicação veio realmente para ficar. Difícil imaginar serviços, educação, jornalismo, entretenimento e mesmo assistência médica clínica, entre outras coisas, sem a mediação tecnológica”, salienta. “(Será) Uma sociedade que viajará menos e se aventurará menos. Uma sociedade mais assustada com as doenças. Possivelmente, uma sociedade mais fechada e mais desconfiada com as culturas diferentes. Uma sociedade mais interessada em Ciência e em Saúde Pública. E, oxalá, uma sociedade mais crítica com seus governantes, particularmente com os que não tiveram nada a dizer para minorar o sofrimento das pessoas durante a crise”, expõe.
A pandemia do novo coronavírus está andamento e as histórias relacionadas à ela estão sendo “escritas” diariamente por todos nós. E como a pandemia poderá ser contada, historicamente, no futuro?
“A História com H maiúsculo vai narrar os episódios ocorridos com a vantagem de dispor de muita informação, facilitada pelo fato de os meios de comunicação terem produzido materiais – principalmente infográficos e vídeos – extraordinários como fonte para os futuros livros de História. As narrativas pessoais serão as do testemunho das tragédias na família, do medo com final feliz e dos descrentes que afirmarão que foi tudo uma grande armadilha mundial inventada pelo comunismo (sic) chinês para dominar o mundo. Um remake de os ‘protocolos dos sábios do Sião’. O presidente vetou integralmente o projeto de lei aprovado no Congresso que regulamentava a profissão de historiador, exatamente com essa intenção. Garantir a versão by Brasil Paralelo para o futuro. Desde que se abriu a discussão sobre o ‘houve ou não ditadura militar no Brasil’ e conseguiu-se emplacar, inclusive na mídia (principalmente nela, eu diria) a ideia de que é necessário ouvir os ‘dois lados da questão’, não há mais volta para essa ideia de que eu recusar a opinião de historiadores qualificados e experientes me coloca como ‘o outro lado da questão’. Se há debate inclusive sobre a existência ou não do Holocausto, ou sobre a esfericidade da Terra ou ainda sobre a eficácia das vacinas, nenhum passado estará seguro no futuro próximo”, considera Medeiros.
Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre os impactos da pandemia de novo coronavírus além da saúde. Confira as demais matérias:
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