Como retomar o diálogo durante a pandemia?

Durante as últimas eleições, durante todo o ano de 2018, tivemos um acentuamento de diferenças que já existiam, mas que foram exacerbadas e chegaram a níveis de polarização. Isso porque houve uma pressão para escolhermos lados, e quando se fala em dois lados, não há espaço para o que está entre esses lados. Passamos por uma intensa polarização de discursos, e em meio à necessidade de defendermos nossas causas, houve uma perda da capacidade de conversar com pessoas que têm opiniões diferentes das nossas.

Na verdade, conforme essa polarização foi acontecendo, foi havendo cada vez menos necessidade de conversar com ou “outros” – isso porque temos tendência de nos fecharmos em bolhas que são confortáveis, com outras pessoas que pensam igual, agem igual e defendem os mesmos lados. Para ajudar, a internet com seus algoritmos nos ajuda a selar essas bolhas, nos mostrando somente opiniões parecidas às nossas e fazendo com que não precisemos exercitar uma habilidade tão rara atualmente: a de dialogar com o diferente.

Com a passagem de 2019 para 2020, os ânimos aparentemente começaram a se acalmar, e foi-se abrindo a possibilidade da abertura para um diálogo entre os polos… e então chegou a Pandemia, e novamente nos vimos divididos, em combate e sem possibilidade de diálogo. Alguns fatores relacionados com a Pandemia fizeram com que essa dificuldade de diálogo fosse intensificada. Diversos novos desafios foram colocados e contribuíram com a intensificação da polarização do diálogo – atitudes governamentais, novas necessidades de posicionamento (fechar tudo ou preservar os empregos, por exemplo) e até mesmo diferentes atitudes em relação à Pandemia.

Para intensificar, toda essa disputa se dá em um contexto que exige isolamento social, ou seja, a Internet se torna o palco principal de toda essa batalha.

A questão da Internet é que o contexto faz com que tudo seja exacerbado – os afetos, a raiva, a indignação e até mesmo o ódio contra o outro. Isso acontece porque a barreira da tela nos transmite uma falsa sensação de desumanização do outro. Coisas que nunca seriam ditas na frente de outra pessoa, são ditas na internet porque as pessoas se veem protegidas por essa falsa sensação de anonimato, como se a mediação da tela anulasse o fato de que são pessoas falando e pessoas ouvindo, com toda sua vivência, sentimentos e com consequências tão reais quanto fora das telas. E então a impossibilidade do diálogo é intensificada.

Ainda, estamos falando de uma doença causada pela transmissão de um vírus, ou seja, um agente invisível passado de uma pessoa para outra… Portanto, temos a sensação de que o outro é o inimigo. Quem foi ao mercado durante a Pandemia conhece a sensação – você passa longe das outras pessoas, sente que está sendo perseguido e fica com medo de qualquer contato humano. O medo das outras pessoas, que são possíveis agentes de transmissão da doença, só aumenta nossa dificuldade de diálogo.

Por fim, estamos falando de uma doença na qual a atitude negligente de uma pessoa não vai prejudicar somente aquela pessoa. Muito pelo contrário, pode prejudicar ainda mais quem está ao redor, que pode ser alguém que mora junto e é do grupo de risco, ou até mesmo alguém que está tomando todas as medidas necessárias, mas acaba sendo prejudicado pelo descuido do outro. Isso tudo faz com que seja muito difícil estabelecer diálogo entre opiniões e posicionamentos diferentes, quando uma opinião acaba se refletindo em atitudes que vão prejudicar (de uma forma tão drástica) tantas outras pessoas.

Pois bem. Uma vez que tenhamos reconhecido os fatores que dificultam o diálogo em meio à Pandemia, e sabendo que toda essa situação está longe de ter um fim, precisamos pensar em possibilidades de retomar essa habilidade que foi perdida – a de ouvir verdadeiramente o outro e conseguir nos expressar sem violência. Em primeiro lugar, essa habilidade precisa partir de uma vontade, e vale o questionamento: será que eu estou disposto a ouvir opiniões diferentes das minhas? Será que existe uma abertura pessoal para o diálogo? As habilidades de comunicação necessárias para um diálogo produtiva só vão existir a partir da disposição para o diálogo. Caso essa vontade não seja identificada, é preciso trabalhar inicialmente nas motivações para mudança. O que eu posso ganhar dialogando com o outro de forma não violenta? Ou, o que eu posso deixar de perder? Talvez uma boa motivação seja uma convivência mais pacífica em meio a uma situação que já é caótica por si só.

Uma vez que seja identificada a motivação, o primeiro caminho para a retomada do diálogo é o de algumas constatações. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que todos nós estamos com medo. Medo da doença, medo da finitude da vida, medo de ficar desempregado, dentes outros medos infinitos. Quando reconhecemos o medo no outro, reconhecemos também sua vulnerabilidade e humanidade, e isso por si só já nos aproxima de uma possibilidade de acolher opiniões diferentes.

Durante discussões com essas “outras pessoas”, muitas vezes podemos nos deparar com manifestações de violência, processo natural quando sentimos necessidade de defender algo, incluindo nossas opiniões e causas. Marshall Rosenberg, o autor de ‘Comunicação não violenta’, nos explica: “Toda violência é a expressão trágica de uma necessidade não atendida”. Partindo dessas premissas, podemos pensar… se todos nós estamos com medo, e toda violência é a manifestação de uma necessidade, talvez um caminho para a retomada de diálogo possa ser o acolhimento do medo e das necessidades do outro. Sendo assim, quando nos deparamos com um embate de pontos de costas diferentes, podemos questionar: “Você está com medo?”, “Do que você precisa nesse momento?”, e “Como eu posso te ajudar?” (aquele clássico que derruba qualquer tentativa de embate). Mesmo não existindo fórmula mágica, pode ser que com essas poucas perguntas a gente perceba que estamos, na verdade, todos do mesmo lado – ou juntos, ainda que em lados opostos. Cuidem-se e cuidem uns dos outros!

 

* Marjorie Rodrigues Wanderley, psicóloga, professora da Estácio Curitiba, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná



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