As diferenças do luto na pandemia: como enfrentar a perda para a Covid?

A pandemia de Covid-19, com seus milhares de mortos e o medo da morte, fez com que o luto se tornasse algo presente. Quem não está vivendo essa dor, conhece algum amigo ou colega de trabalho que esteja. A morte por Covid-19 está associada a uma série de questões, como o sofrimento, a evolução da própria doença e até mesmo a ausência dos ritos tradicionais do luto, como o velório da forma como conhecemos. Essas são algumas das diferenças do luto na pandemia. Então, como enfrentar a perda de alguém querido para a Covid?

A professora Joanneliese de Lucas Freitas, do departamento de Psicologia e da pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do projeto de extensão “Luto: vivências e possibilidades”, explica que o luto de quem perde um ente querido por Covid-19 vem apresentando algumas diferenças em relação a outras situações. De acordo com ela, o atual momento repete aspectos de lutos considerados mais complicados, como a falta do contato com o corpo. Os caixões de vítimas da Covid-19 ficam lacrados durante os curtos e restritos velórios. Além disso, a maioria das pessoas não teve contato com seus familiares e amigos durante o internamento.

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“A falta do contato com o corpo, por exemplo, é algo que tem impacto na experiência do luto. Quando não vê a pessoa, você acaba não realizando, não materializando aquela morte. Demora mais tempo para conseguir ressignificar e entender que a pessoa morreu, que de fato a pessoa não vai voltar”, afirma Joanneliese.

Esse é um sentimento comum a qualquer luto, mas pode se tornar ainda mais intenso quando alguém não tem a oportunidade de ver o corpo morto ou observar o processo de morte. Tudo isso vem acompanhado pelo fato de não existir, em muitos casos, um ritual de despedida. “Lógico que as pessoas são diferentes, mas há uma série de questões, que estão acontecendo juntas, que indicam um luto mais difícil. E é o que temos visto”, conta. 

A professora está ouvindo uma série de relatos de pessoas enlutadas nesta pandemia. O principal é a forma como as perdas estão acontecendo. “A pessoa deixa o parente num hospital, caminhando, falando, consciente. E de repente ela evolui para óbito. Embora tenha gente que fique muito tempo intubada, é frequente essa evolução rápida para óbito ou até mesmo uma melhora e de repente morre. As pessoas falam muito de um sentimento que seus parentes foram arrancados da vida delas. Ouço isso repetidamente dos enlutados por Covid”, revela. 

Somado a isso, os casos de pessoas que perderam vários familiares ao mesmo tempo, em questão de dias, ou até mesmo horas, se tornaram outra diferença do luto na pandemia. Isto representa um maior impacto na saúde mental pelas perdas propriamente ditas, e também por tudo o que acontece na sequência. Essas pessoas ficam ainda mais sobrecarregadas, tendo que assumir cuidados de outros familiares e novos compromissos financeiros. “Isso impacta toda a estrutura familiar e também as responsabilidades que elas têm com outros membros da família”, frisa. 

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p class=”ql-align-center”>(Foto: Alex Green / Pexels)

Falta dos rituais

Joanneliese ainda destaca a consequência da falta dos rituais e da possibilidade de apoio social, em um momento de distanciamento e isolamento, além do próprio medo de transmissão do coronavírus em um caso de morte por Covid-19. “Uma das coisas mais importantes para uma progressão boa no luto, para um enfrentamento mais leve, é justamente o apoio das outras pessoas e a compreensão dessa comunidade. Isso fica comprometido na pandemia. Às vezes, as pessoas não podem fazer uma visita, ou as pessoas têm medo. E os enlutados sofrem muito com isso. Quando alguém morre de Covid em uma casa, é comum que outros na família estejam também. Os outros até querem dar as condolências, mas ficam com medo de se contaminarem”, lembra. 

Todo esse contexto faz com que o enfrentamento desse luto seja diferente, na opinião da professora. Soma-se a isso a própria situação que a pandemia impôs, de dificuldades, restrições, falta de perspectiva, desemprego e problemas na renda, o que deixa esse processo ainda mais doloroso.

Diferenças do luto na pandemia: não existe fórmula correta para enfrentar a perda de alguém querido para a Covid

Joanneliese de Lucas Freitas reforça que não existe uma forma correta de vivenciar o luto. Há reações típicas que costumam acontecer para a maioria das pessoas neste processo. No entanto, segundo a professora, quem reage diferente não representa um problema. Por isso, é necessário ter consciência de que cada pessoa está vivenciando o luto, e do seu próprio jeito. “Não falar é uma maneira de viver o luto, por exemplo. A expressão pode vir de várias formas, e não necessariamente visíveis para as outras pessoas. Esse processo tem mais marcadores pessoais do que sociais”, alerta. 

No atual momento e para quem perdeu alguém que ama para a Covid-19, há um agravante: a própria situação não permite um respiro e um momento de alívio em meio à dor, pois há uma enxurrada de notícias, posts nas redes sociais e comentários na vida real. O enlutado relembra a sua dor o tempo todo. 

“Quando se perde alguém muito próximo, geralmente existem algumas escapadas. Se a pessoa está cansada, poderia caminhar num parque, conversar, ver um programa qualquer na TV. E tudo aquilo é elaborado aos poucos. Mas não é o que acontece com os enlutados hoje. Eles não têm esses escapes. Pouco se pode fazer fora de casa. Em casa, os objetos e o próprio espaço lembram regularmente a perda. Quando se liga a TV, liga o rádio, a internet, rede social, só se fala de tantos mil mortos, hospital, Covid, que não há kit intubação… Essas pessoas não têm descanso mental, e até mesmo mais tranquilidade para viverem seus lutos. A vida e o mundo não estão deixando essas pessoas esquecerem um pouco do luto deles”, avalia Joanneliese. 

Os enlutados nesta pandemia, por todo o contexto de perda abrupta ou várias perdas ao mesmo tempo, podem se sentir ainda mais sozinhos e perdidos. Podem ter a sensação de que não têm mais com quem contar. De acordo com a professora da UFPR, também se torna bastante comum o questionamento da espiritualidade, por não entender por que tudo aquilo está acontecendo com eles e com as suas famílias. “Essas pessoas podem se sentir perdidas e demorar mais tempo (para elaborar o luto), porque a vida vai exigir mais dela. Pode ser que esse luto demande mais dela, até transformar a dor em saudade”.

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