Empreender é provocar. Provocar o mercado com novas ideias, provocar a mudança de padrões, desmontar estruturas ultrapassadas. Ninguém inova sem fazer pequenas ou grandes revoluções. Cada vez mais, a sociedade tem percebido que os modelos que conhecemos são apenas modelos – e não verdades absolutas. Eles estão aí para serem desafiados. Na livre iniciativa, estamos acostumados a ouvir sobre as empresas que passam “de pai para filho”. Dificilmente escutamos sobre as que passam “de pai para filha”, ou “de mãe para filha”. Você já escutou?
Em algum lugar elas existem, talvez não ganhem o merecido destaque. Como médica, entendo que palavra e linguagem também podem ser sintomas. Sintomas de uma sociedade que, de modo geral, ainda acredita no homem como único líder e na mulher no papel de coadjuvante. Os números refletem essa crença. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mesmo que as mulheres representem 70% da força de trabalho em Saúde no mundo, ocupamos apenas 25% das posições de liderança no setor.
Em uma realidade que exige novos olhares e atitudes, ser empreendedor é acordar todos os dias se perguntando o que a gente está fazendo para transformar esse cenário. Áreas ligadas à inovação ou segmentos específicos da Medicina, geralmente ainda pouco explorados, são um campo excelente para as lideranças femininas ocuparem espaços.
Em 2018, participei de um programa de estudos na Bélgica, onde meu orientador solicitou que eu estudasse 150 casos de uso da terapia de Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês). A ECMO é conhecida popularmente como “pulmão artificial”, que dá suporte ao organismo na cura de lesões que gerem insuficiências cardíacas ou respiratórias momentâneas. Com ajuda do procedimento, o sangue realiza suas trocas gasosas, até que o corpo tenha condições de fazer isso novamente sozinho.
Nos casos que analisei, havia desde uma menina que se afogou e precisou substituir as funções pulmonares por alguns dias até pacientes com pneumonia severa, ou que demandavam apoio antes de um transplante cardíaco. Em comum, essas pessoas possivelmente não teriam sobrevivido se estivessem sendo tratadas no Brasil, devido à dificuldade no acesso à ECMO – as razões para isso incluem a falta de cobertura em planos de saúde, o desconhecimento de muitos médicos sobre a forma correta de realizar a terapia, seu alto custo e a indisponibilidade do tratamento na rede pública.
Quando voltei ao Brasil, jamais consegui aceitar a ideia de que perdíamos vidas nas UTIs em situações que poderiam ter sido solucionadas pela ECMO. Foi aí que, ao lado de duas colegas, decidi tentar mudar esse quadro. Em 2019, fomos pioneiras ao participar da implantação de um centro de ECMO em um dos principais hospitais privados de Belo Horizonte. O primeiro atendimento foi a uma criança de 9 anos com disfunção cardíaca. Na sequência, nosso propósito passou a ser democratizar o acesso a esses recursos.
Nem todos os hospitais particulares estavam dispostos a bancar os custos de criar um centro adequado de ECMO, adquirir matérias-primas, capacitar profissionais. Então, organizamos uma estrutura móvel, com time multidisciplinar que se desloca até os centros de referência e transporta o paciente até lá, se necessário, permitindo realizar o atendimento na UTI local.
Em 2020, deu-se uma transformação grande e, ao mesmo tempo, inesperada. Foi identificado que a ECMO é uma terapia eficiente no combate à pandemia e seu uso cresceu 1000% em 12 meses, no Brasil. Nossos atendimentos, que antes previam o suporte aos cuidados com doenças diversas, passaram a se resumir praticamente a casos de Covid-19.
Começamos a ser convidadas a montar equipes especializadas em ECMO nos hospitais, participar de projetos de educação continuada, dando aulas em centros médicos no interior. Familiares de pacientes atendidos em hospitais de renome vinham nos escutar para conhecer uma segunda opinião a respeito da conduta na terapia.
Aquela pequena iniciativa em 2019 de ajudar a disseminar a ECMO, ao lado das minhas colegas (uma médica e a outra, enfermeira) começou a ganhar corpo. Se por um lado a urgência da Covid-19 levou a uma realização de procedimentos por profissionais pouco habituados aos casos – de maneira desordenada e, nem sempre, com as devidas precauções – por outro ajudou a tornar a terapia conhecida do público maior.
E foi no aumento da quantidade de atendimentos realizados que sentimos o peso do preconceito contra a mulher. Não foram raras as vezes em que um parceiro, profissional de saúde ou familiar de um paciente a quem apresentamos a ECMO nos perguntou: “mas são só vocês três”? Como se esperasse um doutor, um homem, um chefe a coordenar três mulheres que, de forma independente, lutam pela afirmação da terapia no país.
Nossa mais recente conquista aconteceu há algumas semanas. Uma estudante de 14 anos foi internada com um quadro grave de Covid-19, em uma unidade da rede pública, e sua morte era dada como certa em questão de horas. Enquanto há inúmeros focos de resistência para o uso da ECMO no SUS, uma empresa doou equipamento e remédios, nossa equipe técnica doou tempo e dedicação. Em nove dias, a adolescente estava recuperada, apontando para a importância da democratização do acesso ao procedimento, que reduz sequelas de longas internações e permite se recuperar com mais facilidade, diminuindo no longo prazo os gastos com saúde.
O enfraquecimento da pandemia no futuro tende a reaproximar a ECMO das indicações para tratar casos além do Coronavírus. Por tudo o que temos vivido nesses últimos meses, se os contos de fadas reforçaram o estereótipo de que, no fim, o príncipe sempre salva a princesa, estamos aqui para mostrar na vida real que a mulher pode salvar príncipes, princesas e muito mais.
(Foto: Divulgação)
* Ana Luiza Valle Martins é médica e Research Fellow Hospital Erasme Bruxelas-Bélgica, doutoranda do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorpórea) adulto e pediátrico pela ELSO (Extracorporeal Life Support Organization), é diretora clínica da ECMO Minas e atua na UTIs do Hospital Mater Dei.
Leia outros artigos publicados no Saúde Debate
Conheça também os colunistas do Saúde Debate
<
p class=”ql-align-justify”>