A dúvida violenta sobre a capacidade da mulher

    Quando eu era recém-formada, uma jovem advogada, eu frequentava o fórum da cidade, obviamente. Numa dessas idas ao fórum, eu precisava verificar um processo com certa urgência. Mas, esse processo não estava disponível no cartório. Então, o atendente me orientou a ir até o juiz, em seu gabinete, e solicitar a consulta ao processo lá mesmo. Eu fui, já sabia que isso era possível. Entrei pela sala de audiências e lá encontrei o juiz e um colega advogado, eles conversavam… Eu pedi ao juiz para consultar o processo e ele prontamente me atendeu, foi muito educado, como era o seu costume, me disse para ficar à vontade.

    Depois de procurar pelo processo numa pilha que estava sobre a mesa, eu o encontrei e comecei a folhear. Nesse momento, o colega interrompeu sua conversa com o juiz e se dirigiu a mim com a seguinte pergunta: A doutora precisa de ajuda? Está entendendo tudo? Naquele momento, não tive uma resposta assertiva para dar, eu não tive resposta. Eu olhei para as folhas do processo e de novo para o rosto dele, depois respondi que não, eu não precisava de ajuda. Agradeci.

    Eu agradeci num ato involuntário de agradecimento, mas o colega não tinha a intenção de me ajudar. Ele não quis me ajudar. Ele, na verdade, não acreditou que eu fosse capaz de analisar o processo, ele não acreditou na minha capacidade profissional. E por quê? Ele não me conhecia, não tinha como avaliar essa minha capacidade. Naquele momento talvez eu soubesse o “porquê”, mas depois de pensar um pouco, ficou mais claro. Ele via em mim uma mulher, uma mulher jovem, e para ele uma mulher não seria capaz de atuar profissionalmente como ele, um homem, um advogado experiente.

    E mais, no fundo ele se sentiu incomodado por estar ali dividindo a mesa da sala de audiências e a atenção do juiz comigo. O machismo. Ele estava lá naquela mesa conosco. Ele está em todo lugar. Ele é escancarado, mas também sutil. Ele vem disfarçado de atenção, de auxílio, de amparo. Ele é incrédulo. É também desrespeitoso e invasivo. Nesse caso, houve a intenção de deboche também. A oferta de ajuda veio acompanhada de um riso debochado.

    A falta de respeito, o deboche e mesmo a falta de credibilidade nos atingem como um tapa, são violentos. E são sutis muitas vezes. Devemos ficar atentos aos detalhes e não minimizar, não tolerar. Não se iludir, fazer o que tem que ser feito. Seguir com a cabeça erguida. Não se abater.

    A ideia de que a mulher tem certas habilidades e o homem tem outras não procede. Essa ideia é fruto de uma cultura enraizada, mas que já estamos conseguindo arrancar. A consciência de que todos temos habilidades independente do gênero é essencial para o alcance da igualdade entre seres humanos. Saber identificar e defender que mulheres são capazes de produzir fora do ambiente doméstico e que homens são muito capazes de cuidar é um bom começo para a igualdade plena e para o fim da violência contra a mulher. Essa violência que tem como causa a noção equivocada de que homens tem poder sobre mulheres, essa triste lição que muitos homens aprendem em casa e no meio em que vivem.

    É urgente que todos se conscientizem de que mínimos gestos e palavras podem mudar a vida das próximas gerações.

    Em caso de necessidade própria ou de outra mulher que esteja passando por qualquer tipo de violência, entre em contato com a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.

    Este é um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres em todo o Brasil. As ligações para o número 180 podem ser feitas de qualquer aparelho telefônico, móvel (celular) ou fixo, particular ou público. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, aos finais de semana e feriados inclusive.