Amanda Armstrong Lemes*
“Não!” costuma ser a nossa reação mais instantânea frente à notícia de uma perda; reação que logo é substituída pelo desespero e pela dor infinita que é perder alguém que amamos, alguém que sabemos insubstituível. Nesses momentos, somos confrontados com a realidade implacável de que alguém, que ontem estava aqui, talvez já não esteja amanhã. Assim, o mundo que conhecíamos pode se transformar em um mundo ameaçador, que já não assegura a continuidade da vida daqueles que são importantes para nós. Um mundo que, por não oferecer garantias, torna-se um lugar hostil para vivermos, colocando em cena a fragilidade da nossa existência.
Por ser uma realidade muito dura de ser experimentada, contudo, buscamos resistir a ela. E fazemos isso buscando por culpados. Às vezes, atribuímos a culpa aos pais, por não terem cuidado direito; aos amigos, que não perceberam; ao governo, que não fez seu trabalho; a Deus, que foi egoísta; ao profissional, que errou; a nós mesmos, que não amamos o suficiente. Se existe uma culpa a atribuir, então a morte talvez fique mais fácil de ser aceita, na medida em que nos iludiríamos com a ideia de que ela poderia ter sido evitada. Racionalmente, sabemos que um dia todos perderemos uma pessoa amada. Nosso movimento de tentar negar a fatalidade da morte quando ela acontece, entretanto, evidencia que emocionalmente não, não existe ninguém preparado para a perda. O que nos faz questionar, por que é tão difícil perder alguém?
Quando perdemos uma pessoa querida, perdemos o mundo como o conhecíamos. Isto é, perdemos parte do lugar que ocupávamos nele: o papel de mãe daquela pessoa, de pai, de irmão, de amante, de amigo. Perdemos a relação que tínhamos com nós mesmos e que era possível porque aquela pessoa existia e nos amava. Ao perder um outro, perdemos parte da nossa autoestima, da nossa identidade, perdemos projetos e perdemos nossa ilusão de imortalidade: passamos a ser confrontados com a nossa finitude e com o valor da nossa existência. Em suma, ao perder alguém, perdemos uma determinada maneira de viver e de estar no mundo que nos era confortável. É como se parte de nós fosse destruída e, justamente por isso, frente à perda, acionamos um trabalho mental de reconstrução de uma nova forma de existir. Esse trabalho, trata-se do luto, aquilo que nos permite sobreviver diante da experiência tão abrupta e dolorosa que é a morte.
Lidar com a perda, portanto, é um trabalho de reinvenção de parte de nós. E justamente aqui talvez resida a verdade mais dolorosa da perda: o fato de que não voltaremos a ser os mesmos quem fomos. Há uma ferida que fica. Nos reconstruímos, mas sabendo que algo de nós ficará faltando. Por isso, parte do nosso trabalho de luto – trabalho de sobrevivência – é permitir que tenhamos perdido. É permitir que aquele que amamos possa ter partido e nos deixado, sem que isso tenha sido uma falha no amor dele por mim ou meu por ele. Lidar com a perda é, antes de tudo, um exercício de autorização para nos desarraigar da culpa de ter sobrevivido e poder apostar na vida, mesmo que ela seja trágica. Isto é, mesmo conhecendo o fato de que ser bom, amar e ser amado, não nos protege de que algo ruim nos aconteça.
Esse movimento de autorização, porém, não é simples, leva tempo e sua dor pode ser devastadora. Nossos projetos, ocupações e nossas relações ficam temporariamente em suspensão, porque nada mais parece nos causar interesse no mundo, que perde o seu colorido. Autorizar-se a se transformar, a trabalhar o luto, passa pelo exercício exaustivo de revisitar as memórias relacionadas àquele que perdemos, dando um novo sentido para elas. Passa pela dor do amor, ou seja, a dor de reavivar os vínculos tão preciosos que se tinha com aquela pessoa quando ela mesma já não está aqui para corresponder aos nossos afetos. De repente, não é mais a ausência da pessoa que nos perturba, mas sua presença maciça em tudo que vemos, tocamos e cheiramos. Se estamos na rua, lembramos de quando passamos ali com a pessoa, rumo a um lugar qualquer, tão longe e agora tão significativo. Da janela, o outdoor anuncia a marca dos produtos que a pessoa gostava de consumir e, dentro do armário, a caneca, antes sem importância, ganha outro valor, porque era sempre a escolhida daquele que partiu. Dessa forma, desligar-se do luto se torna difícil e até abrir a geladeira, fonte de sofrimento. Dói amar.
O que fazer, então, quando perdemos alguém? A verdade é que não há receita ou formas prontas para se lidar com o luto. Para alguns, é tempo de um trabalho mental que exige repouso. O luto não deixa de ser sentido pelo corpo e, para algumas pessoas, é como se toda a sua energia corporal fosse drenada e dirigida para a mente, que mesmo à revelia do corpo exausto, continua trabalhando madrugada à dentro na elaboração da perda.
O luto pode ignorar o sono, a fome e mesmo provocar dor física. Para outras pessoas, ao invés do descanso, a exaustão física é buscada, sendo que a movimentação do corpo ajuda a dar vazão ao excesso de conteúdos que embaralham a mente de uma vez só. Para algumas pessoas, o luto é tempo de reencontro com o divino – com a promessa reconfortante da continuidade da existência de quem amamos. Para outras, tempo necessário de distanciamento do religioso, um movimento para que a culpa que dói tanto possa ser dirigida a um destino impessoal, para que a raiva, o ressentimento e tudo aquilo que repudiamos em nós mesmos, possa ser experimentado de um outro lugar.
Cada pessoa tem sua forma singular de enfrentar a perda, sendo que universal parece, apenas, a necessidade de tempo para que isso possa ser feito. O luto não é instantâneo e não por acaso nos referimos ao processo como sendo um trabalho, o trabalho de luto. Todo trabalho exige um tempo e com o luto não é diferente. E não raro, aliás, as atividades cotidianas passam a demorar mais e ter a execução mais difícil, seja porque perdemos temporariamente o interesse pelas nossas ocupações, seja porque é impossível se concentrar nelas. A perda bagunça nossas vidas e o luto, em sua realização, coloca o tempo em perspectiva: ora acelerado, ora em suspensão. Se a saudade infinita faz parecer que a perda aconteceu há muito tempo, a dor igualmente incalculável faz parecer que a perda aconteceu ainda ontem.
O trabalho de luto, apesar de fundamental, não é uma experiência fácil e muito facilmente pode ser a experiência mais difícil pela qual se passa ao longo da vida. Por isso, existem os rituais relacionados à perda, como seriam os velórios, que nos ajudariam não apenas no enfrentamento da dor, mas também no sentido de conferir um direcionamento sobre como agir em relação a ela; sobre como agir em um momento em que sequer sabemos o que falar. Hoje, não só os rituais estão enxugados como, em decorrência das atuais circunstâncias, impedidos. Ficamos, assim, mais do que nunca, desorientados. O que se torna ainda mais doloroso em uma sociedade que exalta a felicidade a qualquer custo e busca patologizar a tristeza, reduzindo a dor pela perda de quem amamos ao estatuto de um transtorno mental.
O luto não é uma doença, mas uma experiência absolutamente humana, necessitando de espaço no laço social para que possa ser escutado e acolhido. Ninguém lida com uma experiência tão avassaladora sozinho. Tempos de luto são tempos de buscar àqueles que nos são caros; a família, se for possível contar com ela; amigos dispostos a nos ouvir; pessoas que já passaram pela mesma experiência e sobreviveram a ela; grupos de apoio emocional. Se for necessário, um profissional qualificado pode ser de grande valia nesse momento. Fale, chore, grite. E fale novamente e chore novamente se as lágrimas vierem aos olhos. Não há vergonha nisso. Permita-se descobrir o que te ajuda, o que faz bem para você nesta hora; cada um tem seu modo próprio de seguir caminhando para se juntar àqueles que sobreviveram às perdas.
Mas, e no caso em que estou apenas acompanhando alguém que sofreu uma perda significativa? Então é o momento de estar com essa pessoa. Oferecer a sua escuta sem julgamentos, se ela quiser falar, e respeitar o silêncio dela, se esse ainda não for o seu tempo de dizer. Evite as frases feitas, como “foi melhor assim”, elas não são de nenhum valor e tendem a desvalorizar a dor que a pessoa está sentindo. Se a pessoa estiver disposta a isso, um abraço pode ser de maior significado. Às vezes, realizar uma atividade doméstica simples pode ser a necessidade da pessoa naquele momento. Pergunte. Disponha-se. Tenha paciência se a pessoa estiver irritada. Isso faz parte do modo como algumas pessoas vivem o seu estado de fragilidade.
A verdade é que ainda não sabemos a magnitude das perdas que estão acontecendo. É possível que muitos lutos, em decorrência da urgência em resistir à pandemia, estejam sendo adiados, não podendo ser vividos agora. A diminuição do tempo dos rituais contribui para que a perda em si seja ainda mais difícil de assimilar, e o distanciamento social, absolutamente necessário, não deixa de tornar ainda mais solitária uma experiência que por si só é de solidão. Nesse contexto, fortalecer vínculos é a melhor estratégia de enfrentamento que temos para lidar com um sofrimento que tomou proporções coletivas e, mais do que isso, mundiais.
*Amanda Armstrong Lemes é mestranda em psicologia pela UFPR, colaboradora do Projeto de Extensão Luto e Prevenção do Suicídio, coordenado pela Professora Enfermeira Dione Menz. O tema do artigo foi um pedido do Coren/PR, enlutado pela perda de profissionais de enfermagem no combate à pandemia de Covid-19.
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