A democracia é um regime político há muito almejado pelas sociedades e, à medida que dele nos aproximamos, mais ele parece se distanciar. Isto se deve ao caráter extremamente exigente de tal sistema, que pressupõe uma sólida formação das estruturas sociais, o aprimoramento das leis, a garantia de direitos aos indivíduos, e a consequente igualdade entre todos os indivíduos. Poderia se afirmar que esse é o panorama a que aspiram os habitantes do planeta, no entanto, o mundo vem dando mostras frequentes de que os desafios para avançar rumo a este futuro ainda são gigantescos, pois um regime democrático não acontece por ter sido registrado em algum papel, ao contrário, a democracia só se concretiza pelas práticas culturais e na manutenção da liberdade de expressão do pensamento.
O Brasil é uma terra de democracia bastante jovem. Para dar formas a ela, o país teve que superar barreiras colossais, deixando o passado de colônia, proclamando-se como república, sacudindo o jugo de uma ditadura civil-militar e promovendo a via das eleições diretas para escolha de seus governantes. Em todo esse percurso histórico, não faltaram enfrentamentos por parte da sociedade organizada para manter suas conquistas cívicas.
No entanto, o momento atual tem se mostrado como uma ameaça catastrófica para a manutenção do patrimônio civilizatório alcançado pelos brasileiros. Desde sua posse, a cada dia, os cidadãos vêm se deparando com medidas autoritárias e tresloucadas, com decisões que corrompem o caráter público de respeitáveis instituições, sendo muitas dessas iniciativas baseadas no desprezo à ciência e negação dos fatos reais. Isso sem falar da conduta pessoal do próprio mandatário maior da nação, que se utiliza de expressões de baixo calão e de gestual chulo incompatíveis com o se espera de quem ocupa tal posição. Esse comportamento tem alimentado e estimulado uma série de atos violentos e preconceituosos por parte de alguns grupos da população brasileira, vários deles de extrema direita ou de orientação fascista.
Todo esse panorama, como já se afirmou, tem repercutido de forma negativa no cotidiano dos cidadãos, colocando para todos os segmentos da sociedade brasileira a necessidade de fortalecer sua capacidade de defesa, não somente lutando por conquistas sociais mais gerais, mas também lutando por melhorar condições para a sua atuação profissional, como é o caso dos profissionais de Enfermagem.
Sabemos que importantes problemas enfrentados por estes trabalhadores não se circunscrevem ao espaço temporal do governo bolsonarista. A conquista de planos de cargos e salários em diferentes níveis da iniciativa pública, como também da privada; a luta pela jornada semanal de 30 horas; a segurança de ambientes de trabalho satisfatórios e saudáveis; a superação dos preconceitos de gênero e raça; a qualidade do ensino formal e dos demais espaços de formação profissional, são desafios colocados para a Enfermagem brasileira desde sua constituição como profissão regulamentada. Diante deles, as entidades da categoria – conselhos de classe, sindicatos e associações – não cruzaram os braços, ao contrário, têm se levantado sempre que necessário, e com isso, vêm mantendo as bandeiras de lutas da categoria e assegurando algumas importantes conquistas.
No entanto, as ameaças e os destemperos do atual governo, particularmente com o setor Saúde, nos parecem se configurar como um especial chamamento para a categoria manifestar sua indignação e mobilizar suas forças para revidar à altura os ataques nefastos por ela sofridos. A mais recente e descabida manifestação do presidente foi a incitação por ele feita a seus seguidores para que invadissem hospitais públicos e de campanha, e tratassem de fazer registros de imagens e gravações em vídeos, com o intuito de mostrar o verdadeiro quadro de ocupação dos leitos destinados aos portadores de COVID-19. Ora, tamanho disparate atinge a todos os profissionais e gestores de saúde do país, em especial aos que atuam nesses espaços, pois é uma demonstração clara de que o atual governo desconsidera e desqualifica por completo o árduo trabalho desses trabalhadores no enfrentamento à pandemia que estamos vivendo.
Não menos espantosa foi a manifestação agressiva de grupo de bolsonaristas contra enfermeiras/os que protestavam na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no último 1º de maio. Conforme informou o Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal, “o ato queria chamar atenção para a enfermagem nacional e tinha três objetivos centrais: defender o isolamento social como base científica, homenagear os trabalhadores da enfermagem de todo o Brasil que morreram lutando contra a Covid-19 e mostrar a importância da categoria”. Não restam dúvidas de que a ação nefasta daquele grupo se respaldava no comportamento truculento, igualmente agressivo e extremista que tem sido propagado diariamente por Jair Bolsonaro.
Sabemos, também, que um dos campos principais de atuação dos profissionais de Enfermagem é o Sistema Único de Saúde, um sistema mundialmente respeitado por sua concepção e arrojo como política pública, num ambiente mundial onde imperam os ditames do neoliberalismo. Uma política pública que se compromete a assistir a todos (universalidade), com igualdade de acesso e de forma integral, requer um Estado cujo governo se disponha a alinhar ações no sentido de garantir a esse sistema os aportes financeiros para que se concretize tais princípios na vida dos indivíduos e dos coletivos.
No entanto, as prioridades do atual governo vão na contramão da defesa dessa importante e vital política pública para o povo brasileiro. Somente neste ano de 2020, o Ministério da Saúde já teve 2 mandatários, e está no terceiro, este de forma ainda interina. Para a categoria da Enfermagem isso deve se revestir em motivo de indignação e de motivo para fortes manifestações em defesa da saúde pública, pois isso significa não somente defender a garantia do direito fundamental da população à saúde, como também preservar o seu principal campo de atuação no país. O SUS, nas três esferas de governo – municipal, estadual e federal – representa um potencial campo de trabalho, no entanto, ainda bastante restringido dadas as dificuldades que vem enfrentando, notadamente com o subfinanciamento crônico do setor.
A pandemia do Coronavírus tem trazido, de forma contraditória, um cenário de grande visibilidade para o trabalho da Enfermagem. Raramente se viu nas mídias – comerciais e redes sociais – tantas reportagens e matérias sobre a dedicação, o desempenho e as condições de trabalho de enfermeira/os, técnicos e auxiliares de Enfermagem. O papel da enfermagem nos serviços de atenção à saúde de todos os tipos – hospitalares, ambulatoriais, de controle sanitário e epidemiológico – tomou uma proporção de valorização que não pode se perder. É hora de intensificar essa visibilidade. A categoria da Enfermagem não deve baixar a guarda e pode aproveitar este momento histórico – difícil a todos – para fazer elevar sua voz e encaminhar suas legítimas demandas.
*Enf. Paulo de Oliveira Perna e Enfa. Maria Marta Nolasco Chaves, docentes aposentados da UFPR
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