Um dos traços marcantes do modelo agrícola mundial tem sido a enorme proporção de danos deixados à natureza, alguns deles bastante visíveis, outros nem tanto. O certo é que a maior parte do agronegócio (com raras exceções) tem sido responsável pela poluição das águas, pela destruição de florestas e pelo empobrecimento dos solos, principalmente devido ao uso de agrotóxicos em larga escala, ao uso extensivo de maquinário pesado e à prática de técnicas ambientalmente inadequadas – além da larga aplicação da biotecnologia, na forma da alteração e da edição genética.
Tudo isso forma aquilo que Ulrich Beck chamou de sociedade de risco. Foi esse mesmo autor que chamou atenção para o que ele chama de efeito bumerangue: para ele “cedo ou tarde, os riscos em alcançam inclusive aqueles que os produziram ou que lucraram com eles”. Isso significa que os atores da agricultura de ponta, hoje chamada de agrobusiness, haverão de ser afetados pelos efeitos colaterais criados pelo seu próprio modo de produção. Para Beck, o efeito bumerangue leva a uma queda na fertilidade das lavouras, à perda de animais e plantas indispensáveis ao equilíbrio ambiental e à boa produção, e ao aumento de erosão do solo, por exemplo. Esses seriam alguns dos epifenômenos negativos trazidos pela agricultura. No fim, trata-se de um efeito circular, que cria uma “unidade entre culpado e vítima” na medida em que o criador e o agressor da terra acaba também sendo uma das primeiras vítimas dessa agressão.
Com isso, a crise da agricultura não ameaça apenas a sua própria base econômica, mas também, como consequência, o abastecimento de toda população e a própria construção de respeito a natureza e da saúde da população em geral. Afinal, efeitos indiretos passam a ser sentidos por todos e eles incluem, no caso dos proprietários de terras, a própria desvalorização das propriedades situadas nesses ambientes degradados. Embora possamos dizer, amparados no conceito de justiça climática, que pobres e ricos enfrentam de formas diferentes os impactos da destruição ambiental, é também verdade que os pobres são aqueles que menos tem condições de sobreviver ao colapso.
Ulrick Beck chama atenção para uma questão óbvia: na arena das disputas ideológicas, apagam-se as informações que dão conta de que “tudo que ameaça a vida neste planeta, está ameaçando também os interesses de propriedade e de comercialização daqueles que vivem da mercantilização da vida e dos víveres” (p. 46). Essa é a contradição mais evidente do atual modelo de produção agropecuária, em vigor especialmente no Brasil. Quanto mais ela buscar o lucro com a usurpação dos direitos dos seres vivos e com a destruição do meio ambiente, mais esse próprio lucro (e a base da propriedade sobre a qual ele se assenta) são colocados em xeque.
No caso de agora, por exemplo, tanto as inundações no Norte do Brasil quanto a gravíssima seca que afeta as lavouras no Sul, demonstram claramente que a destruição das florestas, especialmente a Amazônia, levada a cabo pelo próprio agronegócio, volta-se como efeito bumerangue em seus efeitos contra esse mesmo modelo de produção. E isso é um alerta que deve ser levado a sério: ele deveria despertar uma maior consciência da parte dos gestores políticos e dos agentes desse processo, consolidando um movimento de maior respeito à natureza e aos povos tradicionais afetados por essas práticas. Esse não é mais, de jeito nenhum, um assunto alheio aos processos produtivos, mas, precisamente, uma premissa básica de sua própria continuidade. No fundo, ninguém mais está imune aos efeitos desta calamidade. As mudanças no regime de chuvas, por exemplo, que está por trás das secas e das inundações, confirma que o problema não respeita nenhum tipo de fronteira, mas ao contrário, torna-se precisamente por isso, um problema de tipo político, na medida em que confronta as responsabilidades e as culpas com a disseminação dos seus efeitos em larga escala.
O que no fundo está em jogo é o modelo de desenvolvimento baseado num tipo de produção que coloca natureza sempre em segundo plano, com consequências danosas tanto para o meio ambiente quanto para as comunidades locais, grandemente afetadas pelo mesmo processo. Todos os seres vivos e todas essas comunidades humanas estão ameaçadas pelos mesmos riscos que ameaçam os produtores que veem suas lavouras secarem sob o sol escaldante dos verões gaúchos. Ulrick lembra que, no máximo, a classe dos afetados se contrapõe agora, aos ainda não-afetados, já que, diante das calamidades climáticas, todos, sem distinção, sofrerão com os seus efeitos – entre os quais está o aumento do custo dos alimentos, que leva a mais inflação e a mais fome.
Olhando para a agricultura, podemos aplicar facilmente a frase de Beck, para quem “o diabo da fome é combatido com o belzebu da potencialização do risco“ (p. 51), ou seja, queremos produzir mais, mas para isso, continuamos aumentando a destruição do meio ambiente e inviabilizando o próprio processo produtivo. Não podemos continuar pensando que a essa “indústria motorizada da alimentação” na qual se transformou, segundo Heidegger, a agricultura, continue gerando tantas ameaças. Não é mais possível que a produção continue crescendo sob o sangue dos pobres e a depredação da natureza. Isso não é bom para ninguém.
*Jelson Oliveira é Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e de vários livros, além de colunista do Saúde Debate
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