Recentemente aconteceu algo interessante no meu contexto profissional que me fez refletir ainda mais sobre como devemos tornar mais públicas e frequentes as conversas sobre o tema da morte e do morrer.
Como grande parte das pessoas sabem, eu atuo na área de Cuidados Paliativos (CP).
Para quem tem pouca familiaridade com o tema farei uma breve explicação: trata-se de cuidados que visam promover alívio de sintomas, conforto e qualidade de vida para pessoas que enfrentam um adoecimento grave. O principal objetivo é proteger a pessoa doente, e seus familiares, de mais sofrimento. Nesse sentido os cuidados paliativos podem (e devem) estar presentes desde o diagnóstico de uma doença grave, passando por todas as fases do tratamento, ajudando a pessoa e seus familiares a enfrentar melhor essa caminhada, e ter os sintomas bem manejados é algo imprescindível nesse enfrentamento.
Ocorre que no senso comum, e até mesmo entre profissionais da saúde com pouca informação, a ideia que prevalece é a de que são cuidados destinados somente para pessoas que estão morrendo. O que não é verdade. São também, mas não somente. Os Cuidados Paliativos são muito amplos, não se restringem somente ao estágio de terminalidade de uma doença, muito embora sejam instituídos somente nesse momento.
Outra visão totalmente equivocada dos CP, é que são feitos para “acelerar” a morte. Longe disso! Isso configuraria eutanásia, proibida em nosso país.
Dentre os vários estudos que têm sido feitos acerca dos CP, um deles pesquisa a forma como as pessoas estão recebendo cuidados de saúde e como as pessoas estão morrendo. O Brasil sempre aparece nas piores colocações, ou seja, as pessoas estão sofrendo e morrendo sem o conforto e o cuidado que deveriam ter acesso.
Receber CP é um direito humano básico de toda pessoa, como bem já colocou a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Feita essa breve introdução, voltemos ao que me motivou a escrever esse texto.
Eu dizia que presenciei uma situação que me fez pensar ainda mais em como estamos entendendo a vida e sua finitude. Era uma situação em que eu faria uma palestra sobre Cuidados em fim de vida (uma das fases em que os CP devem estar presente). Ou seja, cuidados para pessoas e familiares que passam pelo processo de morrer, o quê e como podemos fazer para que essas pessoas passem por esse momento da forma mais digna possível, com sintomas controlados, com cuidados, com respeito àquela história de vida e junto de pessoas importantes e significativas. No entanto o nome da palestra causou estranheza e desconforto e ele foi modificado (para minha surpresa).
Fiquei pensando o que de fato havia causado tanto incômodo? E em como estamos distantes ainda de pensar a finitude da vida de forma natural e certa para cada um de nós.
Se eu não fosse uma pessoa que atua na área da saúde, eu ficaria feliz em saber que há um número considerável de profissionais estudando, pesquisando, se aprimorando, para tornar esse momento difícil em um momento cheio de cuidado e respeito. Sim, porque Cuidados Paliativos envolve muito estudo, pesquisa, preparo e dedicação dos profissionais envolvidos.
Trago também essa reflexão para percebermos como o tema da morte ainda gera muito desconforto e permanece sendo um tabu em nossa sociedade, há muitas restrições ainda em torno do tema. A morte continua sendo vista como algo muito distante de nós e quanto mais longe pudermos deixar as conversas sobre ela, parece que mais confortáveis ficamos. Esquecemos que quando chegar o momento da nossa própria finitude, possivelmente necessitaremos de algum tipo de cuidado, e quanto mais e melhor preparados estiverem os profissionais da saúde, melhor seremos atendidos e cuidados, mais as nossas dores serão aliviadas, mais dignidade teremos no momento em que deixarmos de existir no corpo que hoje nos dá forma.
Já ouvi muitas pessoas dizendo que não tem medo da morte, mas tem medo de sofrer antes dela. E por que? Porque é isso que presenciamos, pessoas sofrendo com dor e desconforto na hora da partida. Familiares sofrendo junto e ficando com aquela imagem na memória. É justamente isso que não queremos. É isso que os CP se propõem a fazer, cuidar para que as pessoas não sofram desconfortos sejam eles físicos, psíquicos, sociais, espirituais. Os CP cuidam de todas essas dimensões.
Não precisamos nos assustar quando ouvirmos falar em cuidados de fim de vida, isso deve ser motivo de alívio, saber que os cuidados nos momentos finais de vida estão sendo feitos de maneira mais humanizada, mais acolhedora, mais respeitosa visando, para aqueles que enfrentam um adoecimento grave, um fim de vida mais digno.
Pra você, isso causa estranhamento?
* Jociane Casellas é psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná em 2000. Pós-graduada em Psicologia Clínica com ênfase na abordagem Sistêmica (UTP). Pós-graduada em Psicologia Hospitalar (HC-UFPR). Pós-graduada em Psicologia Transpessoal (FIE). Especialista em Cancerologia pelo programa de residência multiprofissional do Hospital Erasto Gaertner e Ministério da Saúde. Mestre em Bioética (PUCPR). Atuante em Cuidados Paliativos. Trabalha na área da saúde tanto na assistência como na docência, com temas sobre morte, luto, humanização, cuidado integral, comunicação em saúde.
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