O transumanismo é um movimento de cunho filosófico e ideológico que pretende usar a tecnologia para controlar a natureza humana e aprimorar a performance humana, abarcando aspectos tão distintos da nossa vida como a edição genética, o controle do comportamento e o prolongamento da vida. Conta, para isso, com grandes investimentos e uma boa dose de entusiasmo por parte de seus tecnoprofetas que, com ajuda da ficção científica, difundem e popularizam as suas ideias. Mas esse movimento está muito longe de ser apenas ficção científica. Bem ao contrário: inúmeros são os êxitos que podem ser debitados desses investimentos e, pelo que tudo indica, muita coisa ainda vem por aí.
Ora, uma das áreas mais promissoras e pouco discutidas do transumanismo é a sexualidade humana. Byung Chul-Han já tematizou – no seu A agonia do Eros – como a sexualidade está sendo sequestrada pela lógica do altíssimo desempenho, na qual a essência do amor (que é a experiência do/com o outro) vem sendo substituída por um narcisismo desvairado. As promessas transumanistas podem ser classificadas de acordo com essa mesma lógica, seja porque boa parte das promessas de aprimoramento corporal têm em vista o aumento das experiências de prazer, seja porque o crescente uso de dispositivos tecnológicos pode transformar a relação sexual em um ato meramente masturbatório.
Eu me explico: a evolução tecnológica dos chamados brinquedos sexuais (que incluem especialmente os chamados sexbots, ou seja, os robôs sexuais, feitos com materiais cada vez mais próximos do corpo orgânico e o uso de computadores para gerar experiências de prazer controladas não apenas pelo corpo em si mesmo, mas por dispositivos tecnológicos) tende a transformar o outro em um mero aparelho onanístico. Nas palavras de Julian Savulesco e Anders Sandberg (dois arautos do transumanismo), o aprimoramento humano passaria pelo “neuroaprimoramento do amor e do casamento”, ou seja, pela utilização de neurocontroladores capazes de orientar nossas emoções afetivas, provocar ondas de prazer, curar eventuais frustrações emocionais, potencializar a atração física, modular o interesse e o afeto entre as pessoas – tudo por meio de estímulos químicos, farmacológicos e neuronais.
O professor Michael Hauskeller descreveu esse processo com maestria no seu livro Sex and the posthuman condition (2014), chamando atenção para os impactos dessas tecnologias sobre a nossa vida amorora e, consequentemente, da existência humana como um todo – considerando que a sexualidade é um aspecto central de nossa vida. Ao pretender potencializar nossas experiências sexuais e controlar os aspectos negativos (como o ciúme, a saudade ou as frustrações) que a vida amorosa nos impõe, tal perspectiva tenderia a substituir os contatos humanos, em toda a sua complexidade, por experiências sexuais com robôs maravilhosos, cujos corpos se adaptam exatamente aos gostos e exigências de cada um de nós, com a vantagem de poderem simplesmente ser lavados e guardados depois do ato sexual (sem diálogos indesejados, sem cobranças, sem criar relação ou dependência, sem compromisso, afinal), mantendo “nossa autonomia intacta”.
A produtora sexual feminista Jincey Lumpkin, em sua palestra Are robots the future of sex?, no TedX, mostrou sua convicção de que em algumas poucas décadas estaremos cercados de robôs humanoides que poderiam ser usados para vários propósitos, inclusive os sexuais. A tese acompanha os prognósticos de gente como Ray Kurzweil, futurista e autor do livro A era das máquinas espirituais (1990) e da tese da singularidade, que dava conta, inicialmente, que em 2049 as máquinas se tornariam mais inteligentes que os seres humanos. David Levy, em Love & Sex with Robots (2007) problematiza o fato de que nós passaremos a amar esses robôs como o fazemos agora com os seres humanos. E o que será de nós? Talvez os filmes A garota ideal, com Ryan Gosling, ou Ela, de Spike Jonze possam nos dar pistas sobre o assunto, enquanto Mulheres perfeitas (de 2004), com Nicole Kidman e Glenn Close, dirigidas por Franz Oz, faça pensar sobre o desejo masculino de uma mulher perfeita – ou seja, aquela que age como um robô e está totalmente à sua disposição (cumprindo o seu papel de dispositivo), posicionada a seus serviços. Seria o máximo do desejo machista – a transformação final da mulher em um objeto, em um perfeito aparelho de escuta (aquele que não fala).
Todas essas ideias não estão longe de nós. Desde que Charles Goodyear possibilitou “bons anos” de deleite por ter descoberto, em 1839, uma forma de tornar a borracha resiliente, os brinquedos sexuais são cada vez mais sofisticados e podem ser comprados a um clique, com a promessa de regular e alterar os meios de estimulação e potencializar nossas experiências sexuais de tal forma que elas possam dispensar pessoas reais. Muitos psicólogos e psicanalistas têm demonstrado preocupação com as consequências desse processo, já que a dispensa dos outros corpos pode modificar nossas disposições afetivas e tornar a presença do outro, em sentido geral, hostil e indesejada. Se o isolamento do ser humano com suas máquinas já é um fenômeno preocupante entre jovens e adolescentes que vivem grudados em suas maquininhas ao invés de investirem em relações humanas reais, o uso crescente de sexbots pode aprofundar ainda mais o insulamento narcisista do qual, perigosamente, estamos nos aproximando.
*Jelson Oliveira é Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e de vários livros, além de colunista do Saúde Debate
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