A pandemia nunca esteve em estado tão crítico no Brasil. Os serviços de saúde de vários estados estão à beira do colapso ou já atingiram ocupação máxima. Faltam leitos, faltam remédios e profissionais estão esgotados. Aumenta o tempo médio de internamento em UTI’s, crescem os números de casos e de mortes e o processo de vacinação é muito lento devido aos problemas logísticos e à escassez das ofertas de vacina. Ao que tudo indica, as irresponsabilidades cotidianas, agravadas pelas festas de carnaval, cobram seu preço.
O número de casos entre os mais jovens é assustadoramente alto e as sequelas da doença parecem deixar marcas mais graves do que se sabia. O vírus continua não só se reproduzindo, mas gerando novas variantes, muito mais contagiosas. Como medidas de contenção, as regras voltam a ser mais rígidas e incluem toque de recolher, controle de hábitos, campanhas de todo tipo e até mesmo lockdown, ou seja, o fechamento total, como acontece em cidades do interior paulista.
Nesse contexto, a sociedade se divide sobre a volta às aulas. Trata-se de um dilema difícil, que inclui a aprovação de legislações que consideram a educação atividade essencial, algo que garantiria a abertura das escolas. A indecisão do governo federal e a quase inércia do ministério da educação agrava o cenário, deixando a sociedade em disputa entre si, todas as partes com bons motivos e justos argumentos. As escolas particulares, historicamente com melhores condições e estruturas, defendem sua estratégia, forçada pelos péssimos resultados econômicos de um ano de fechamento e pela pressão das famílias.
O mesmo não ocorre na escola pública, onde estão os mais pobres e onde a carência de condições estruturais mínimas coloca em xeque a estratégia do retorno. Só quem nunca entrou em uma escola municipal e estadual de periferia, acredita que haverá condições de manter as medidas sanitárias adequadas. Quem conhece essa realidade e atua nessas condições tem toda razão em resistir à abertura e temer por sua própria saúde. Eles sabem que é impossível resolver em poucos dias o que persiste como catástrofe há séculos: o abandono da escola pública e de seus membros discentes e docentes.
Todos sabemos que o coronavírus, embora possa afetar todas as pessoas, tem matado desigualmente no país: morrem mais negros e pobres, precisamente aqueles que têm menos condições de acessar os serviços de saúde e de cumprir as medidas de contenção. Teme-se, assim, que a abertura das escolas dê azo à mesma lógica nefasta. Além disso, são os pobres que mais precisam da escola. E isso por vários motivos, sendo o principal o fato de que a educação é a única forma que os filhos dos trabalhadores, já grandemente afetados pela crise econômica, saiam da pobreza. Eles precisam voltar às aulas, além disso, porque foram os maiores prejudicados pela pandemia também do ponto de vista educacional: a maioria dos alunos das escolas públicas não teve nenhuma aula nesse período porque suas escolas não ofereceram atividades on-line, ou porque não têm acesso à internet, ou porque não têm um equipamento adequado ou mesmo uma casa com o mínimo de dignidade para oferecer as condições mínimas de privacidade para que isso seja possível.
Em geral, os defensores do retorno, afirmam que as crianças e adolescentes são os que correm menores riscos e os que colhem os maiores prejuízos, devido à importância da educação para seu desenvolvimento cognitivo. E isso, também, é mais grave entre aqueles que vivem em famílias pobres, cujas estantes estão vazias de livros e cujos familiares têm pouca preocupação com sua formação intelectual, atarefados que estão com o ganha-pão cotidiano. Há quem diga que mesmo a transmissão do vírus nessa faixa etária é bem menor do que nas demais. Outros defendem que os/as docentes, ao contrário dos profissionais da saúde, geralmente não estão no grupo de risco e que, inclusive, poderiam optar entre o retorno presencial ou as atividades on-line. Não é certo que tudo isso funcione no Brasil (no geral, faltam dados para legitimar essas afirmações).
Entre as medidas de adequação das escolas, os especialistas apontam para o revezamento dos estudantes; a divisão das turmas; o escalonamento dos horários; o uso e troca constante das máscaras; a formação de grupos de estudantes que, em caso de contaminação, possam ser isolados sem que a escola precise fechar; a lavagem constante de mãos; a limpeza adequada de banheiros, cantinas e outros espaços; a realização de atividades no pátio sob a supervisão de profissionais; e a atenção especial aos professores e colaboradores com mais de sessenta anos ou doenças crônicas.
Ora, dependendo da Escola, pelos sertões e periferias, muitas dessas medidas parecem impossíveis – quando não risíveis. Revezar alunos como, se os sistemas de internet não funcionam e os se os que ficam em casa continuarão sem acesso às condições para isso? Máscaras, álcool, regras de distanciamento? Lavagem de mãos em lugares onde a pia não é mais do que uma torneira sobre o chão barrento e os banheiros carecem de água, papel e higiene básica? Como desenvolver atividades ao ar livre, em meio ao sol escaldante e à poeira fina que corrói a matéria e esgota a energia a níveis desumanos? Como e quem haverá de controlar adequadamente a saúde de profissionais em uma realidade tão precária que falta quase tudo?
Há quem ache que esses argumentos são exagerados e que a realidade da escola pública é melhor do que isso. Em algumas, em alguns lugares, em alguns momentos, pode ser. Mas o fato é que na maioria não. A escola pública continua sendo, na mente dos governantes e da elite nacional, um depósito de pobres. Os investimentos seguem uma lógica perversa: para que vela muita pra defunto pouco? E essa é uma dívida social histórica, que atravessa os séculos com a vantagem de que povo ignorante persiste como eleitor de cabresto: vende ou dá o voto por ignorância, por desinteresse ou por fome.
A pandemia, ao tempo em que agravou essa situação desigual, deu a chance para que o país enxergue o que permanece oculto e, mais do que nunca, lute para que essa dívida seja paga. Quem vai às manifestações para a abertura das escolas hoje deve ir também àquelas que reivindicam educação gratuita e de qualidade para todos/as, inclusive as greves em que a polícia e o governo agridem aqueles que mais conhecem essa realidade, porque estão inseridos nela diariamente, os professores e as professoras. Por isso, para voltar às aulas, o Brasil precisa pagar sua dívida com a escola pública e todos os seus agentes. A pandemia exige e nos prepara para essa tarefa, embora o que se veja sejam cortes e mais cortes, precisamente onde a ferida está mais exposta e a dor é mais aguda.
* Jelson Oliveira é Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e de vários livros, além de colunista do Saúde Debate
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