Como Munch, estamos doentes, com medo e sozinhos

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2021-01-21 | 22:37h
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2022-03-29 | 17:32h
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Em 1919 o pintor norueguês Edvar Munch pintou o seu Autorretrato depois da gripe espanhola. Nessa tela Munch retoma o tema da doença e do desespero diante do sofrimento, já retratados em outras obras como O grito,A menina doente e A mãe morta e a criança. A semelhança entre vida e obra e, mais ainda, entre as várias obras, é impressionante. Nelas aparece a própria história do autor: a morte da mãe quando ele tinha apenas cinco anos, a morte de uma irmã aos quinze, a doença mental de outra e, sobretudo, a própria doença. Seu autorretrato é, na verdade, o imagem da dor diante da fragilidade da vida, cujo susto e desespero estão naquele rosto franzino, naquele semblante escorrido e naquela boca aberta da qual o som parece romper o silêncio do quadro e afetar diretamente o expectador.

Munch, que também pintou Nietzsche, de quem era leitor assíduo, conhecia a condição humana como ninguém e via a solidão, a doença e a finitude como seus aspectos centrais. Como o filósofo alemão, talvez compreendesse que é no leito de morte ou, antes, durante os sofrimentos trazidos pela doença, que o ser humano é levado mais intimamente para dentro de si mesmo.

Para Nietzsche, a doença era uma oportunidade: “Somente agora vê a si mesmo – e que surpresas encontra nisso! Que arrepio nunca provado! Que felicidade ainda no cansaço, na velha doença, na recaída do convalescente!”, escreveu ele em Humano, demasiado humano. A dor trazida pela doença era, além disso, uma espécie de oportunidade para o aprofundamento em si mesmo – e ninguém sairia incólume disso, ao contrário, algo de superior brota sempre daquele que superou a doença. “Seja você como for, seja sua própria fonte de experiência!”, escreveu o filósofo, reconhecendo na doença precisamente a chance de tornar a si mesmo um laboratório da maior experiência de todas, aquela que temos conosco mesmos. Afinal, aprendemos com ele: o que não mata, fortalece.

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Contemplando o autorretrato de Munch, é o que ele parece evocar. Um homem convalescente, abatido por um vírus que infectou, em dois anos (1918-1920), mais de quinhentos milhões de pessoas (um quarto da população mundial) e levou à morte entre dezessete e cem milhões de pessoas – até ontem, essa tinha sido a nossa última (e uma das nossas maiores) pandemias.

Munch estava pintando a si mesmo em 1919, enquanto lá fora as pessoas morriam aos milhares, sem informação, sem conhecimento, sem remédio, sem vacina. Seu rosto e seu grito são o grito de toda essa gente, seus familiares, os profissionais da saúde, os doentes de toda espécie, os mortos…. entre preto e vermelho, cores sobrepostas de forma nervosa e pinceladas apressadas, com traços lisos e bem definidos, exagerados e quase obsessivos. Ele está no quarto, sentado diante da cama, olhando diretamente para o expectador, a quem parece dirigir o seu grito de socorro. Segura um pano sobre as pernas, como quem busca última dose de calor, conforto e consolo. O rosto esmaecido e pálido e os cabelos raros concordam com o vazio das paredes e com a desordem da cama e com os rastros confusos da tinta. Sozinho, ele está abandonado na confusão do quarto, que é também a desordem do mundo. Prostrado e moribundo, ele é o retrato da debilidade humana diante de um vírus.

Como Munch, estamos todos vulneráveis mais uma vez. Nos leitos de hospitais, entubados em uma unidade de terapia intensiva, morrendo sem adeus, nós e nossos entes queridos estamos diante da nossa fraqueza e efemeridade. Há muitas razões para isso: o vírus, a falta de responsabilidade dos governantes, a desinformação, a descrença na ciência, a falta de cuidados dos cidadãos. O certo é que a pandemia de agora nos coloca ali, reclinados naquela cadeira, boquiabertos em desespero, diante do que nos afeta.

Como Munch, estamos com medo e sozinhos. Como ele, puxamos, com mãos frágeis, um cobertor até o colo, buscando refúgio. Como ele, oxalá sobrevivamos para pintar também um novo autorretrato, produzido na dor, mas exposto na alegria e na responsabilidade da vida, que nos presenteia todos os dias a energia das resistências e das superações. 

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