O feito histórico da viagem de Bezos e sua trupe ao espaço na manhã de hoje, 20 de julho de 2021, cujo sucesso foi celebrado com champanhe cara e chapéu de cowboy sob o sol do deserto texano, precisará de muita tinta para ser compreendida. A cena não é apenas o resumo do que pode vir por aí, no futuro, quanto à relação do ser humano com a Terra e sua provável (e desejada) conquista do espaço, mas, sobretudo, diz respeito ao nosso passado, ao modo como nos relacionamos entre nós e com o nosso planeta até agora. A viagem de hoje abre uma nova era de diversão para os bilionários do mundo que deixam para trás as imagens tristes de mundo doente. Enquanto pagam seu milhão pelo ticket que dá direito a uma viagem de onze minutos às bordas do planeta essa gente assume a falência da utopia maiúscula da política, a construção de um mundo em que todos podem ser incluídos.
Como aconteceu nas viagens espaciais do século XX, também agora o problema principal não é o que eles vêm pela frente, o espaço aberto para a exploração humana, a colonização de outros planetas, o uso de recursos e a corrida pela especulação cósmica. O que está em jogo é o que esses bilionários deixam para trás: um planeta degradado, milhares de pessoas morrendo de Convid-19, países inteiros sem acesso à vacina, extinção das espécies, aquecimento global e, sobretudo, fome e miséria, acompanhadas das doenças mais antigas da humanidade.
Alguns dirão que somos injustos e que Bezos mantém projetos de ajuda aos mais pobres e investe em proteção ambiental. Migalhas! Coisa de bilionário fazendo caridade. Ele mesmo declarou, em 2018, que não tinha nada mais importante para investir o seu dinheiro: “a única maneira que vejo para empregar tantos recursos financeiros é convertendo meus ganhos na Amazon em viagens espaciais. É basicamente isso.” Simples assim, entende? Sem querer julgar os atos pessoais de ninguém, o que interessa é o gesto simbólico da Blue Origin, que tenta, desesperadamente, fazer o que uma parte da humanidade quis fazer até hoje: livrar-se do planeta, considerado como uma prisão, um lugar ruim. Bezos atualizou hoje o que Strauss escreveu em referência ao livro de Hans Jonas sobre o gnosticismo: “a mais radical rebelião contra a physis”. O lema remonta aos movimentos gnósticos que vieram do Oriente e se encontraram com o Cristianismo nascente, atravessando boa parte da nossa tradição moral, cujas bases se ergueram sobre a ideia de que o mundo é algo imundo e de que pertencer ao mundo é pertencer à imundície. “Mundo é um xingamento cristão”, escreveu Nietzsche, ressaltando a visão de negação da vida que abasteceu boa parte de nossas morais.
O que Bezos e sua trupe fizeram hoje no deserto do Texas tem o mesmo espírito. No fundo, o que eles estão propondo é que a Terra (e a maior parte de seus habitantes) precisa ser superada. Com isso, fazem o que o filósofo Bruno Latour considerou como a atitude das chamadas “elites obscurantistas” que entenderam que “para sobreviver comodamente”, ou seja, sem mudar seu estilo de vida e suas atitudes em relação ao planeta e aos demais seres vivos, “não necessitavam mais fingir compartilhar a terra com o resto do mundo, nem sequer como um sonho a perseguir”. Latour classifica essa atitude como antipolítica por excelência, dado que a política é a utopia de um mundo compartilhado, com os quais todos se comprometem – TODOS se responsabilizam. Hoje, no deserto do Texas, a política morreu. Morreu porque tornou-se possível que os bilionários voltem seus olhos para o espaço, deixando para trás os antigos ideais de viver bem, de vida boa e de felicidade, idealizados como vidas em conjunto, como compromisso em fazer com que todos vivam bem. A ideia de um mundo para todos é que morreu hoje, naquele deserto (e não deixa de ser simbólico que tenha sido precisamente nesse lugar, onde a vida não cresce). Bezos e seus amigos sabem que, para viver como eles vivem, não há mais mundo para todo mundo. Por isso estão tentando um jeito de fugir daqui.
O que torna possível essa empreitada é a tecnologia. O que diferencia Bezos dos outros negadores do mundo do passado, é que ele é o homem mais rico do mundo – e, ao que tudo indica, deverá ficar ainda mais endinheirado, porque receberá por cada viagem pelo menos 6 milhões com os 6 tickets vendidos. Acumulará mais dinheiro, para viajar cada vez mais longe. A tecnologia, apoiada cientificamente e financiada pelo sistema capitalista, é a ferramenta que fomenta esses milagres. E, ao que tudo indica, sendo um poder de tipo ilimitado, poderá expandir-se indefinidamente no tempo e no espaço. Nem as mais sádicas mentes poderiam imaginar esse mecanismo em funcionamento.
É de Bruno Latour que chega a mensagem: para sobreviver, é preciso aterrar (esse é, precisamente, o título de seu último livro lançado no Brasil, Onde aterrar?). E essa é também a mensagem subliminar do projeto de Bezos: a novidade é que o foguete que serve para a ejeção da cápsula, tanto quanto a própria cápsula com os passageiros (e sem tripulantes, note-se), aterrissam novamente na Terra. Eles ainda não podem viver no espaço, mas estão começando a viagem. Para trás eles deixam a “origem azul” (como sugere o título da empresa, numa teimosa referência àquilo que precisa ser superado, a blue origin) para atirarem-se na pretura do infinito.
Pascal escreveu a famosa sentença dizendo que “o silêncio desses espaços infinitos me apavora”, confessando, amedrontado, que o espaço parecia vazio. Bezos deixa para trás esse temor e embarca, destemido e quase sem emoção, como é seu feitio, numa viagem barulhenta rumo ao desconhecido. O Deus silencioso que não falava com o filósofo de Port Royal é o mesmo que Bezos parece encarnar agora. Vestido de azul, o bilionário parece divino. Nunca o dinheiro nos levou tão longe. E nunca ele deixou para trás uma prova tão contundente de que deveria ser partilhado, porque nunca a desigualdade social ficou tão escancarada. Um menino pobre da Somália ou um jovem sem vacina do Haiti em guerra civil continuam enterrados aqui, sem esperança, vítimas da orgia que assistimos hoje, naquele deserto que cresce. “Ai daquele que cultua desertos”, advertiu Nietzsche.
*Jelson Oliveira é Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e de vários livros, além de colunista do Saúde Debate
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