Em tempos de pandemia, os médicos e demais profissionais de saúde são mais necessários. Temos acompanhado a sua luta ao redor do mundo, em momentos tão dramáticos, onde lhes cabe tomar as decisões mais delicadas e perigosas e para as quais precisam estar preparados. Tal coisa é bem mais evidente em época de crise, mas devemos lembrar que uma tal tensão é a constante na vida desses profissionais do estresse. Por isso, entre todas as profissões, aquela que merece realmente ser chamada de uma “arte” é a médica.
Como arte, a medicina cuida da saúde do seres humanos, um dos objetivos mais dignos, mais necessários e mais antigos da humanidade. Sua grandeza está no fato de que o objeto de seu arte é o organismo vivo, compreendido como um fim em si mesmo, cuja dignidade é inviolável. É esse “o alfa e o ômega na estrutura-alvo do tratamento”, como escreveu Hans Jonas no seu livro Técnica, medicina e ética, de 1985 (São Paulo: Paulus, 2013). Segundo o filósofo alemão, ao contrário das outras artes que têm como objeto uma matéria indiferente e eticamente neutra, no caso da medicina a matéria-prima é o paciente, o objeto final e completo sobre o qual ele deve se empenhar.
Nessa arte, torna-se necessária uma investigação e um saber que caminham de mãos dadas com a reflexão sobre os fins e os valores, ou seja, sobre a ética de suas ações. Em outras palavras, cabe ao médico a obrigação de julgar com precisão e autoridade o bem que está em jogo, isto é, a vida de seu paciente. Uma tal coisa, foge dos conhecimentos meramente abstratos e generalistas: no caso do médico, ele precisa juntar o conhecimento específico à intuição e à capacidade de decidir. É isso, precisamente, que faz da medicina, mais do que uma técnica, uma arte propriamente dita que se aplica não apenas a um corpo vivo, mas ao sujeito, ou seja, à pessoa inviolável que se apresenta neste corpo. Cuidar do corpo, por isso, é cuidar da pessoa. Detentor de uma tal arte, o médico precisa constantemente apelar para sua consciência para ser capaz de decidir se, quando e onde ele deve agir em benefício tanto do paciente, em sentido individual, quanto da humanidade que se apresenta nele.
A dimensão médica da responsabilidade, por isso, envolve uma relação singular entre o médico e seu paciente. Como um “comissionado da sociedade e servidor da saúde pública” (JONAS, p. 163), contudo, o médico também tem uma função social que se concretiza principalmente na medicina preventiva, pela qual o médico atua em benefício não apenas de um paciente particular, mas de toda a sociedade, inclusive das gerações futuras. Em nome da ética, assim, o médico deve evitar que as pessoas se tornem pacientes e, por isso, apelar para o isolamento de um paciente “em caso de enfermidade contagiosa, para proteção da comunidade”.
É nesse momento que se pode compreende “a responsabilidade superior” da arte médica, pois esta alcança a sociedade em geral, as gerações futuras e os cuidados com o destino da espécie humana sobre a terra. O médico deve lembrar “que o sacrifício da consciência que lhes são exigidos no estado da prevenção são brincadeiras de crianças em comparação ao que de maneira forçosa viria acontecer em um momento de crise aguda ao qual ele não preveniu” (JONAS, p. 165).
Evitar o pior, por isso, é parte central dessa nova dimensão da responsabilidade. Da arte da medicina exige-se, antes de tudo, a capacidade da prevenção. Isso significa que cabe ao médico prever o futuro, dando preferência para o prognóstico negativo em vista da manutenção do bem maior que é a vida da humanidade. Trata-se de assumir uma “responsabilidades longo prazo” (JONAS, p. 166), que alcance um equilíbrio entre o interesse do paciente particular e o bem de toda a humanidade presente e futura.
É essa a relevância da arte médica em tempos como os nossos, em que precisamos isolar – a alto custo econômico – muitos indivíduos em benefício da saúde e da vida de outros tantos. É por isso que esses profissionais são hoje tão necessários e sua arte preventiva, tão benéfica.
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