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Trilhas na Ilha de Boipeba-BA. Créditos: Acervo Gilmar Rosa

Vivemos numa era digital. Quase tudo é feito por aplicativos na internet a partir dos smart phones e tablets, cada vez mais sofisticados e caros. Apesar disso, certo é que muitas pessoas não arriscam acessar tais comodidades disponíveis por não saberem usar os recursos ou por medo de fraudes e roubos cibernéticos. Alguns não utilizam por causa da idade, que não permite confiar na “nuvem” ou porque não sabem lidar com tantos comandos, senhas, verificações, biometrias, escaneamento facial e mais um monte infindo de invenções modernosas. Outros não usam mesmo porque desistiram depois das fraudes e roubos a que foram submetidos, e isso de pessoas de meia idade, conscientes, conhecedoras das manhas da internet, pessoas com curso superior que tem ojeriza a tudo que é feito por computador, principalmente transações financeiras.

Neste mundo insano, perdido em tantas interrogações, ainda é possível encontrar pessoas reais, de carne e osso, que falam, que sorriem, que brincam, que divagam, que trabalham e trabalham duro. Num tempo em que o que vale é o número de seguidores nas redes sociais ou o número de curtidas nas postagens pasteurizadas produzidas diariamente em altas doses.

Deparar com pessoas prontas a interagir, contando e revelando suas histórias e mazelas do cotidiano, que sentem prazer em conversar, prosear, dialogar tem se tornado fato raro neste século digital. Em minhas andanças tenho percebido o quão importante é para as pessoas conversarem, relatarem seus percalços, seus sonhos e suas decepções, além da felicidade que permeia suas vidas de forma, às vezes, tão sublime, tão simples! Ouvi-las torna-se um grande aprendizado, fonte da qual jorram inúmeros prazeres pelas descobertas relevantes das vidas que batalham de sol a sol para garantir a sobrevivência. São conhecimentos práticos para aplicação na vida citadina, acompanhadas de pequenas e curtas histórias inesquecíveis.

Em Boipeba conheci um jovem que estava procurando instalar um pequeno Éden em sua barraca na praia de Moreré. Ouvir suas ideias de plantar em volta de seu espaço as bromélias enormes nascidas na ilha, enfeitar com conchas as estruturas de sustentação, espalhar pela areia cadeiras espreguiçadeiras feitas de madeira, rodear de coqueiros toda a extensão daquela área, produzir coquetéis com as frutas mais típicas da região, deixar uma pequena canoa disponível para os mais corajosos singrar os mares … tudo fazia parte de um plano, de um projeto, de uma visão de preservação dos bens da natureza para deleite dos visitantes. Planos relatados em conversas ao sol daquela maravilhosa ilha. Queira Deus que tais projetos fluam para a concretização.

Praia de Moreré, Ilha de Boipeba-BA. Créditos: Acervo Gilmar Rosa

Na Paraíba deleitava-me em ouvir as histórias cotidianas da luta travada todos os dias por um “barraqueiro” que transformou-se em amigo conselheiro para as aquisições domésticas, desde panelas até carne e peixe! Desde as primeiras vezes em João Pessoa contei com a boa vontade de “Bigode” em informar-me o que fazer na cidade. Toda manhã cedinho estava ele em Tambaú a borde de sua limusine Parati 1994, carregada de cadeiras e guarda-sóis. E cedinho era cedo mesmo, 6 horas da manhã estava ele por lá! Nos últimos meses, acompanhado do fiel escudeiro, “Babalu”, “Bigode” esmerava-se em atender com muita simpatia e respeito aos turistas que acorriam ao início da praia de Tambaú.

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Praia de Tambaú, João Pessoa-PB. Créditos: Acervo Gilmar Rosa

Numa destas tardes ensolaradas e pachorrentas na beira daquele mar calmo, “Babalu” sentou-se por uns minutos para descansar do estafante trabalho. Foi neste momento que contou-me um pouco sobre sua vida, o cuidado com a mãe doente, o falecimento da avó com mais de 90 anos e, fiquei pasmo!, a compra pelo avô viúvo de um caixão e mortalha, guardados solenemente na sala da casa em uma cidadezinha do interior da Paraíba! Enquanto nas capitais civilizadas e cosmopolitas do Brasil rico as pessoas fazem panos funeral para assegurarem-se de seus caixões, crematórios e o mais, ali, naquele momento, percebi o quanto temos de diferentes em relação aos sertões e grotões desse imenso Brasil. Pois é, para não ser um peso na hora da morte, alguns adquirem seus caixões e mortalhas, guardando-os cuidadosamente em suas casas! Assim, ninguém sentirá o fardo do preço da morte sobre as costas … tudo já está devidamente comprado e pago para o fatídico dia! Previdência é isso!

A história de Babalu e seu avô deve ser muito parecida com tantas outras histórias existente por este Nordeste imenso, carregado de contrastes, contrapontos, idiossincrasias e desfechos inacreditáveis em cada vida. Acostumados que estamos somente com o que vem até nós pelas mídias direcionadoras dos centros ditos culturais mais representativos da sociedade, não percebemos que a vida não é feita só de “likes” e audiências infladas. Sim, existe uma vida real, antes de mais nada, sofrida e calejada, trabalhadora e suada sob o sol inclemente, batalhadora no sustento da família, renunciando a suas próprias vontades para garantir aos filhos o futuro que não tiveram. Ficamos a mercê de parcas notícias dessas gentes perdidas nas faixas litorâneas que lhes dão sustento, vindas dos interiores, dos sertões, das grotas em que a família permanece a espera da vitória.

Bendito país que abriga em suas fronteiras todas as espécies, todas as raças, todas as culturas, todas as religiões e crenças. Bendito país que tem todas as riquezas, todas as naturezas, todas as águas, tantas terras, pastos, campinas, planaltos, morros. Bendito país que holandeses, franceses, espanhóis tentaram apoderar-se nos longínquos 1500 e que índios, negros e portugueses defenderam para sermos o que hoje somos. Infelizmente, a quem caberia desenvolver nossas virtudes e qualidades só se importa em locupletar-se.

Então, a todos os “Bigodes”, “Babalus”, “Bocas” e tantos outros desconhecidos que se esfalfam no sol a sol para garantir seu sustento e de seus familiares, rogo a Deus uma vida repleta de saúde e realizações, finalização dos sonhos, alegria pelas conquistas e esperança e fé no futuro. Se não fossem as palavras simples, o riso esgarçado, a simpatia esfuziante, não saberia das mazelas e problemas, ficaria apenas aguardando o documentário oficial de que tudo vai bem, tudo está bem, todos são felizes, todos tem comida, salário e assistência! Não é possível perceber nas redes sociais tal Brasil “esgualepado” (como diria minha boa amiga Vânia)! Triste, muito triste saber que somos dois ou mais Brasis. Um que se faz ouvir, gritar, reivindicar, outros que não tem voz, sufocados que são pelo poder econômico e financeiro, que sobrevivem longe das benesses oficiais, só lembrados em anos como este de 2022.

Tudo me faz lembrar Vidas Secas e Morte e Vida Severina…

“E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”. (2)

(1)Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto (09/01/1920-09/10/1999), escrito entre 1954-1955.

(2)Vidas Secas, Graciliano Ramos (27/10/1892-30/03/1953), escrito originalmente em 1938.

*Gilmar Rosa é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Positivo e História – Memória e Imagem pela Federal do Paraná. Participou na execução de um dos mais importantes projetos de implantação de APS no estado do Paraná em 2014. Atualmente, busca um lugar ao sol que tenha águas cálidas e agradáveis durante todo o ano.

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