O que a vida quer da gente é coragem

e uma boa dose de prudência!

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2022-03-29 | 17:33h
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Saúde Debate
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Dia desses, estava revisitando minhas saudades, lugar em que costumo passar algum tempo, de quando em quando.

 

Depois de um breve contato por e-mail com uma das pessoas significativas da minha vida, deparei-me com a recordação de uma certa trilha que fizemos, eu e meu primo mais novo, há quase duas décadas. Uma saudosa recordação que ainda hoje me faz gargalhar, devido ao perrengue que passamos nesta feita. Éramos jovens, tínhamos todo o tempo do mundo, disposição, uma certa curiosidade e muita, muita vontade de desbravar o mundo.  

 

Apenas um parênteses: é perceptível que minha família paterna gosta de se aventurar. Está no nosso DNA! Minha bisavó era wanderlust-raiz, depois, minha avó e, assim, geração após geração, essa arte foi aprimorada. É nossa marca registrada, digamos assim. Gostamos mesmo de explorar tudo o que nos liga à natureza. 

 

O tempo passou e quis a vida que este primo fosse morar longe de mim, em outro continente. Mas soube que continua trilhando e isso me deixou muito feliz, porque significa que nos mantemos conectados de alguma forma. E a natureza tem esse poder de criar vínculos, elos. Quando nos reencontrarmos, certamente teremos muitas histórias para compartilhar.

 

Bem, voltando ao relato, o plano era caminharmos até a Roda D´água, no famoso caminho do Itupava, que liga os municípios de Quatro Barras e Morretes. O dia amanheceu quente, era verão, e essa trilha oferece diversos pontos de banho. Como chegamos bem cedo à base, estaríamos praticamente sozinhos na trilha. A diversão estava garantida!

 

Mas, a vida queria nos ensinar uma lição aquele dia.

 

Ocorre que, enquanto preenchíamos a ficha de visitantes no posto do IAP, o fiscal nos informou sobre uma fuga de prisioneiros do presídio de Piraquara naquele final de semana.

 

Bem, esse não é o tipo de informação que se quer receber, principalmente porque o tal presídio fica do outro lado da rodovia, próximo ao local onde iríamos trilhar. Mas como o acesso à trilha é de certa forma controlado pelo Instituto, “ficamos tranquilos”. Na real, todos sabem que aquela mata já foi e continua sendo o primeiro refúgio de muitos fugitivos de Piraquara; cenário de vários furtos e assaltos. Enfim… estávamos cientes, mas, motivados. Éramos jovens, mas pouco sensatos, confesso.

 

De repente, outro visitante chegou ao container do IAP, aparentemente mais velho que nós, e meu primo, que é muito observador, reparou que ele segurava um facão em uma das mãos. Me olhou, assustado, e logo eu descobri o por quê daquela cara de espanto. O detalhe é que de dentro do container não era possível que o fiscal visse o facão. Mas, como sinalizar isso sem ofender o visitante? E se de fato ele fosse um fugitivo e reagisse? Que dilema! Instintivamente e sutilmente, começamos a interagir com o visitante, para sondar as intenções dele. Então, decidi perguntar num tom mais sério (esperando que o fiscal fizesse alguma intervenção) o que ele iria fazer com o facão.

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– “Vou pescar!”, disse ele sem titubear. O fiscal, por sua vez, não esboçou a mínima reação.

 

Enfim, de minha indagação, surgiu outra indagação do visitante: – “Vocês conhecem a cachoeira que fica perto de uma pedreira?”

 

Em minha presteza, respondi que sim, sem imaginar o que viria depois: ele nos pediu para guiá-lo até a entrada da cachoeira, pois ele próprio não conhecia o caminho. Que cilada! Olhei para meu primo, ele prestes a desmaiar na minha frente, pálido, mas fomos. Passa muita coisa na cabeça da gente em uma situações como esta, mas tentei manter a calma e administrar as emoções, pensando nas alternativas que teríamos; uma estratégia caso nossos piores pensamentos se concretizassem.

 

Segundos antes de iniciarmos a trilha, combinamos o seguinte, eu e meu primo: o facão deveria ficar sempre na nossa frente, e nós, lado a lado, sempre atrás.rs Imaginamos que assim nos sentiríamos mais seguros; foi o que conseguimos improvisar na hora.

 

Ao longo da trilha, continuamos a interação com o visitante, com perguntas do tipo: você vem sempre aqui? Faz trilhas a muito tempo? Toda essa embromação para chegarmos, mais uma vez, à pergunta que teimava em não calar: o que você vai fazer com o facão? Segundo ele, usaria para abrir picadas na mata, se precisasse. Sinceramente, nada fazia sentido. Pensei, está blefando! Mas, enfim, a m… já estava feita e nossos pensamentos estavam nos sabotando. Na pior das hipóteses, já éramos reféns do nosso próprio medo.

 

Durante o trajeto, o que lembro é que, o visitante desacelerava o passo, nós desacelerávamos também, sempre tentando manter uma distância razoável caso precisássemos sair correndo.rs Foi então que ele parou bruscamente, sem avisar, e por um descuido nosso, quando nos demos conta, estávamos na frente, e ele, atrás de nós com um facão na mão. Mais alguns segundos de tensão e, quase instantaneamente, meu primo pegou um galho caído no caminho para usar como bengala. Desconfiei que a intenção era outra. Começamos a nos olhar de revesgueio para não perder mais nenhum movimento do camarada. A essa altura do campeonato, mesmo que mal falássemos, tenho certeza de que meu primo, tanto quanto eu, já tinha certeza de que seríamos atacados quando entrássemos na parte mais fechada da mata.

 

Continuamos caminhando, calados, por uns minutos. Então, voltamos a fazer perguntas e falar incessantemente, nervosos. Mas todas as nossas perguntas foram respondidas sem nenhuma contradição e logo nos aproximamos da bifurcação onde nos separaríamos, na entrada que daria acesso à cachoeira. Inclusive, um ótimo lugar para uma desova, se fosse o caso.rs

Na encruzilhada, à esquerda, se vai à cachoeira e, seguindo em frente, começa a trilha do Itupava. Paramos bem na encruzilhada e indicamos com a mão a continuidade da trilha para a cachoeira. Nos despedimos rapidamente, sem muito diálogo, mas desejamos boa sorte na pescaria e seguimos nosso caminho, sempre olhando para trás e para os lados, com medo de reencontrarmos o sujeito a qualquer momento. Mas isso, graças a Deus não aconteceu e seguimos até a Roda D´água, com uma incrível sensação de termos sido livrados de algum mal, pelo menos aquele mal que criamos na nossa mente fértil.

 

Meu primo tomou vários banhos nas águas geladas dos rios que cruzam a trilha até a roda d’água, feito criança. Ele realmente gosta de água gelada. Não é o meu caso! Apenas fiz o registro fotográfico do passeio e aproveitei para refletir sobre a experiência que tivemos. O medo, a angústia, a dúvida, a vontade de sair correndo e encontrar proteção e segurança. Todos esses sentimentos negativos foram se dissipando ao longo da trilha, mas, o tempo todo reconheci a importância de nunca trilhar sozinho.

 

Dois trilheiros é melhor que um? Toda a vida! Mas, acho que, no mínimo três e, no máximo, quatro trilheiros, é o número ideal, no caso de uma desventura em série.rs

 

Meu conselho para meu eu de 20 anos atrás seria, em hipótese alguma, de jeito nenhum, nunca, nunquinha vá trilhar sozinho. Quem dirá trilhar sem se sentir seguro ou diante de um perigo iminente. O verdadeiro trilheiro deve evitar correr riscos desnecessários e assim as chances de voltar para casa vivo aumentarão bastante.

 

Felizmente nunca passei por situações de ser assaltado ou ser abordado por gente má intencionada em todos esses anos de trilha, mas conheço pessoas bem próximas a mim que já voltaram pra casa só com a cueca, caso de outro primo que amo bastante, infinitas vezes mais imprudente que eu quando era jovem. kkkkkkk

 

Esse é o relato da trilha que virou piada nos encontros da família. Recordações de uma experiência inesquecível que me faz querer viver mais 100, 200 anos trilhando, só para ter outras histórias para contar.

 

Inclusive, há uma semana, retornei ao local e refiz a trilha, um trecho menor dela, até o Pão de Loth. Muito vento, muito barro … além de que o visual do cume revelou as montanhas das serras do Marumbi e do Ibitiraquire e, no final, um belo banho de cachoeira … aquela em que nosso amigo do facão foi pescar a uns anos atrás.rs

 

Me despeço com as palavras de quem nunca viu a luz, as cores e as formas, mas entendeu que mesmo assim a vida pode ser incrível, a escritora Hellen Keller:

“A vida é uma aventura ousada, ou então não é nada!”

 

Ousemos, o mundo é feito de chão … mas sejamos prudentes!

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