O mau ar da malária

Pode parecer morbidez falar de mais uma doença, em meio ao desenrolar de uma pandemia viral, que, aliás se soma a outras endemias brasileiras que vitimam brasileiros como dengue, obesidade (20%), hipertensão (25%), diabete (8%) entre outras tantas doenças que já se tornaram “rotineiras”. 

Estou me referindo à malária, doença que acomete, atual e principalmente, a região norte do Brasil; minha intenção é chamar a atenção para as consequências do desconhecimento e do pouco cientificismo de afirmações e condutas frente a fenômenos biológicos que se repetem ciclicamente em maior ou menor grau, afetando regiões, países ou continentes.

Há exatos 100 anos, estávamos saindo da pandemia da chamada “gripe espanhola” (vírus H1N1) que, estima-se, matou mais de 50 milhões de pessoas pelo mundo; e, mesmo assim, novos surtos se repetiram de lá para cá, felizmente sem repetição dessa imensa mortalidade. 

A malária, no século XVIII, recebeu o nome italiano “mal aire”, baseado em uma teoria de que haveria “miasmas” transmitidos por ar insalubre. Em 1880, o médico francês Charles Alphonse Laveran, na Argélia, observou parasitas da Malária (do gênero Plasmodium) em hemácias humanas, e com isso abriu caminho para se descobrir que o modo de transmissão era feito através de mosquitos do gênero Anopheles, esclarecendo finalmente que não era o ar, mas o mosquito, o responsável pela disseminação da doença.

O mosquito aspira sangue contaminado para se alimentar e conduz o protozoário das hemácias contaminadas para outro ser humano, ao buscar refazer suas refeições sanguíneas. Ficou claro então que o ar sozinho não transmitia a doença. Apesar de conhecermos todo o mecanismo e, felizmente, já termos tratamento para a doença malária em suas várias formas, a doença ainda acomete milhões de pessoas predominantemente na África e também nas regiões Amazônicas das Américas.

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em 2017, estima-se que houve 219 milhões de casos de malária em 90 países e territórios. As mortes por malária em 2017 chegaram a 435 mil no mundo.

Hoje, estamos fazendo um esforço concentrado, mundial, para não chegarmos a esse número pela atual pandemia. Nosso momento é diferente, mas o elemento natural de transmissão é o mesmo, exceto pelo animal que transfere o vírus para (e entre) os humanos.

Absolutamente, sem reduzir um milésimo que seja a atuação imprescindível da ciência, temos um outro fator que pode fazer toda a diferença no enfrentamento da progressão da virose que está vitimando pessoas, relações sociais e em especial as relações comerciais: a comunicação.

Malabaristicamente, a comunicação tem se esforçado para contagiar o mundo com informações úteis e conteúdos seguros.

A “disinformação” (informação distorcida, inverídica) popularizada como Fake News é fruto de interesses escusos ou simplesmente fruto de busca de popularização egoística, mas altamente danosa ao comportamento da massa.

Assim, é papel imprescindível das fontes de informação e dos profissionais responsáveis por elas que haja comprovação adequada de afirmações e/ou notícias, o que é pratica ética do bom jornalismo e da boa imprensa. Na saúde, como no jornalismo, comprovação técnica fundamentada e argumentada é premissa inquestionável.

Ciência é observação, formulação de hipóteses, experimentação e generalização. Cabe então perguntar se o que estamos “observando” e fazendo são ações efetivas para que o vetor humano não aumente a transmissão do agente causador da COVID 19. 

As experiências mundiais tanto do Oriente, como do Ocidente, tem demonstrado que o isolamento social evita a progressão acelerada da disseminação, embora, é claro, não a evite por completo. A disseminação de forma controlada é e será até certo ponto desejada para que a imunidade populacional ocorra e que a doença se torne endêmica e mantenha ocorrência controlável e tratável.

Aliás, as ações que não são medicamentosas ou intervencionistas, e que são passíveis de implantação a grandes comunidades tem demonstrado resultados na pandemia.

Os tratamentos intervencionistas, seja por medicamentos ou por instalação de equipamentos que minimizam o efeito das complicações, também têm demonstrado que a ciência médica possui condições limitadas de enfrentamento a um flagelo mundial como este e como o que ocorreu há um século. 

 

Ou seja, sob o ponto de vista da presença humano-biológica do homem no convívio com a natureza, a sobrevivência de cada espécie biológica estará sempre colocando questões de luta pela perpetuação. Novos eventos virão, mas as histórias desses eventos devem ser registradas e comunicadas eficientemente para todos os rincões mas especialmente para as gerações que virão.

É de fundamental relevância que o legado dessa hercúlea tarefa mundial seja analisado com a perspectiva de que algumas premissas humanas não sejam esquecidas:

– Estaremos permanentemente sob ameaças de novas adaptações de seres vivos que nos atacarão para garantir suas perpetuações;

– A ciência deve manter vigilância (observação) constante e testar permanentemente hipóteses que possam ser generalizadas frente a esses novos desafios;

– Uma doença infecciosa “nova” ou “repaginada” não afeta somente uma pessoa, mas se multiplica em maior ou menor grau, especialmente quando a invisibilidade do agente é um fator predominante, o que é regra. O que vemos não é o agente mas as modificações que ele causa;

– Frente a novo combate desafiador será necessário termos comunicação verdadeiramente ética e capaz de disseminar as medidas corretas para cura a todos os povos possivelmente infectados.

Obrigatoriamente, para combater o inimigo comum, nós humanos precisaremos nos reformar, seja no conhecimento científico, seja no ajuste cultural, mas e sobretudo, no comportamento frente ao que é coletivo.

Uma nova sociedade, com outro desenho. Plural antes de ser singular. Ética antes de ser oportunista. Coletiva antes de individual. Familiar antes de particular. Gênero antes de espécie. 

Pensemos no dia depois de amanhã possivelmente nublado para que nos reste a próxima semana com sol.  

Curitiba, 29 de março de 2020 (mas poderia ser Curitiba, 29 de março de 1920)

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