Um estudo recente elaborado por integrantes da Comissão de Governança em Saúde do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e intitulado “Governança dos dados na saúde: uso e compartilhamento” apontou para uma oportunidade na área da saúde: o investimento em governança e interoperabilidade de dados. Isso envolve os sistemas de saúde público e privado, os governos e a adesão da sociedade e garantiria melhor atendimento, cuidado e assistência aos pacientes. O levantamento buscou compreender a maturidade das empresas no uso e compartilhamento de dados no Brasil. No contexto de rápido crescimento e acúmulo exponencial de dados no setor de saúde, a implementação de uma iniciativa do tipo é destacada como uma necessidade, já que o que se percebe hoje é a fragmentação do cuidado e dos próprios dados dos pacientes.
O documento se propôs a analisar como o Brasil se posiciona quanto à interoperabilidade de dados na saúde, verificando o contexto do país e de outras nações, como a Dinamarca e Noruega, além de outras regiões do mundo. O conceito viria como um avanço significativo à proposta do Open Health, uma área da saúde que agilizaria o cuidado com os pacientes com base no acesso aos dados deles em hospitais, clínicas médicas, seguradoras de saúde e profissionais particulares. Tendo em vista que o Open Health, por si só, não seria suficiente para explorar todo o potencial que os dados podem oferecer ao setor de saúde, especialmente no que tange à sustentabilidade dessas operações a longo prazo. Por isso surge a necessidade vital da interoperabilidade.
“Nos Estados Unidos e na Europa, o avanço ocorre de forma mais acelerada. No Brasil, os primeiros passos começam a ser dados no sistema público. A tecnologia está sendo usada nos mais diferentes setores e isso precisa avançar também na área de saúde. Ter acesso a dados de qualidade e estruturados faz com que seja possível alcançar um cuidado melhor, trazer segurança para o paciente e também muito mais eficiência [ao setor], inclusive conhecendo melhor a pessoa doente e conseguindo tomar ações com base nos dados que estariam acessíveis”, comenta Teresa Sacchetta, médica especialista em saúde e tecnologia e vice-coordenadora da Comissão de Governança em Saúde do IBGC.
A fragmentação dos serviços de saúde e a inconsistência na adoção de padrões pelos sistemas de informação resultam em dados de saúde de pacientes armazenados em bancos de dados distintos e não integrados. “Como as informações são fragmentadas entre as variadas instituições que atendem os pacientes, os profissionais de saúde deixam de enxergar oportunidades que podem ser de grande valia para a saúde das pessoas. Em cada uma das etapas do cuidado, ter acesso às informações pode ajudar muito no tratamento e evitar problemas [futuros]. Um idoso, por exemplo, depois de ir ao geriatra, poderia ser acompanhado dentro de casa para evitar futuras intercorrências, mas quem está fora do hospital inexiste para o sistema de saúde. O fato de a jornada ser fragmentada, dos dados estarem distantes e ninguém acompanhar o indivíduo na sua jornada como um todo, faz muito se perder. Seria possível prevenir, tratar mais rápido, tratar melhor e evitar muitos problemas que acontecem nos hospitais por falta de dados disponíveis no momento do atendimento”, explica Teresa.
Segundo ela, uma das barreiras para o avanço da interoperabilidade de dados em saúde no Brasil é o desalinhamento de incentivos. “Há um conflito de interesses na forma como o setor está estruturado: os prestadores de serviços são remunerados pelo uso, enquanto os planos de saúde se beneficiam pela não utilização de serviços”, diz, reiterando que a falta de interoperabilidade na saúde resulta em desperdício de tempo dos profissionais e das pessoas, além de excesso de gastos no setor como um todo. Para ilustrar, há um artigo divulgado no periódico BMJ Open Quality que revelou que cerca de 22,2% das indicações cirúrgicas para tratar a endometriose são consideradas desnecessárias. Além disso, constatou-se que 13% das cirurgias de remoção da vesícula biliar são realizadas sem justificativa adequada. Já um estudo realizado pelo Hospital Albert Einstein (SP) avaliou que 60% das indicações de cirurgias de coluna não tinham necessidade.
Outra barreira significativa e desafiadora para a aplicação prática e segura da interoperabilidade de dados é o tratamento das informações dos pacientes. Eliana Herzog, advogada e pós-graduada em Administração Hospitalar, assim como coordenadora do Fórum de diversidade em Conselhos do IBGC no Rio Grande do Sul indica: “Uma das principais preocupações que temos enquanto profissionais é a qualidade dos prontuários dos pacientes, o que tem tudo a ver com a governança dos dados, pois queremos preservar esse prontuário e ter efetivamente a gestão dele. Com essas informações à disposição, o uso da IA e a migração para prontuários eletrônicos, é possível fazer essa interoperabilidade de dados. À critério do paciente e com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) como base, o paciente, como titular do dado, autorizaria as pessoas, médicos, clínicos, cirurgiões, o acesso ao histórico de saúde”.
Quem tem medo da interoperabilidade de dados?
Os membros do estudo elaborado também se preocuparam em realizar um levantamento qualitativo por meio de entrevistas individuais com outros membros da Comissão de Saúde do IBGC, assim como com outros profissionais atuantes no setor, sobre a percepção “em relação à importância da interoperabilidade de dados na saúde, e o estágio de maturidade do setor e das empresas envolvidas”, conforme mencionado no documento. Os dados coletados revelaram que a maioria dos entrevistados acredita que a liderança no compartilhamento de dados deve partir do poder público. Porém, os resultados do levantamento sugerem que a gestão da guarda e o compartilhamento desses dados seria beneficiada por uma abordagem colaborativa, envolvendo tanto as instituições de saúde pública quanto as privadas.
“Na área da saúde temos a Anvisa, o Ministério da Saúde, o Conselho Regional de Medicina e diversos órgãos que cuidam de pedaços, segmentos específicos, mas não temos um órgão central que tenha um poder supra agências. Como não existe um alinhamento de incentivo nessa direção, mesmo as iniciativas que já estão prontas para aplicar a interoperabilidade ainda estão esperando o comando de um órgão regulador”, comenta Isadora Campos, coordenadora da Comissão de Governança em Saúde do IBGC, reiterando a necessidade de haver uma plataforma unificada de saúde.
Isso porque, segundo ela, o acesso aos dados em escala nacional possibilitaria a criação de estratégias e oportunidades, por exemplo, para quebrar outras barreiras de incentivo à saúde, inclusive em locais do Brasil não hegemônicos, como os fora do eixo Rio-São Paulo, que estão à margem do sistema. “Não só pacientes, mas também médicos poderiam se beneficiar do uso da tecnologia, porque sabemos também das condições precárias de trabalho desses profissionais fora dos grandes centros”, reflete.
Ana Lin, membro da Comissão de Governança em Saúde do IGBC, afirma que “a criação de um repositório unificado de dados de saúde da população brasileira também permitirá a realização de análises mais amplas e profundas, embasando a criação e o aprimoramento de políticas e programas de saúde”. Uma iniciativa nesse sentido já criada pelo Governo Federal que é citada no estudo é o ConecteSUS (atualmente chamado de Meu SUS Digital). Este sistema unifica informações de saúde dos cidadãos, promovendo a integração entre instituições de saúde e os órgãos responsáveis pela gestão desses dados. No sistema, os usuários podem acompanhar histórico clínico, dados de vacinação, resultados de exames, medicações, posição na fila de transplante, entre outros serviços realizados em espaços de saúde da federação. O acesso é online ou por aplicativo, a partir de CPF e senha.
Paulo Jorge Rascão, também membro da Comissão de Governança em Saúde do IBGC e diretor técnico da Athena Saúde, comenta: “O que falta para o ConecteSUS é pedir para as instituições privadas a integração dos dados deles no aplicativo, seja de histórico de exames e procedimentos ou de resultados. As farmácias pedem o CPF dos indivíduos para o registro de compras, então também seria possível rastrear quais medicamentos cada usuário das drogarias utiliza periodicamente”.
Por fim, o estudo ressalta como a interoperabilidade tem potencial e pode melhorar significativamente o setor, garantindo resultados clínicos eficazes para os pacientes, colocando-os no centro das discussões e como o foco principal do sistema de saúde, o que exigirá alta maturidade e governança efetiva de todos os stakeholders envolvidos. Ricardo Lamenza, membro da Comissão de Governança em Saúde do IBGC e coordenador da comissão do Conselho do Futuro, comenta que atualmente essas forças estão em desequilíbrio. “De um lado temos os grandes fabricantes de equipamentos e fornecedores de medicamentos pressionando em função do desenvolvimento da tecnologia cada vez mais rápida e avançada por um aumento de custos. Do outro, os convênios e uma pressão em diminuir custos, até por causa da atual sinistralidade. E, no meio desse ecossistema, os hospitais e clínicas são pressionados de ambos os lados para manejar essas forças opostas. Isso reflete uma falta de visão estratégica, enquanto deveria haver um foco muito maior na prevenção, já que prevenir é menos custoso do que tratar doenças avançadas com internações, mais exames e cirurgias. Por enquanto, há ainda uma visão de curto prazo. O sistema de saúde deve priorizar o paciente, que deveria ser o grande beneficiário de todo esse processo. E isso é viável com a interoperabilidade de dados”, conclui.
*Informações Assessoria de Imprensa