“PRESENCIAL”: onde estarão a nossa escuta e os nossos afetos?

Nestes 18 meses de pandemia da covid-19, durante o isolamento social, muitos de nós vivenciaram a intensidade da tecnologia e, também, do convívio com familiares ou consigo. Diferentes afetos estiveram presentes, sendo expressos e afetando de maneira singular cada um.

Para definir os afetos, o psicanalista e professor Dr. Christian Dunker refere-se a eles como nossa capacidade de afecção, nossa capacidade de receber. O afeto e nossa capacidade de ser afetado deixam uma marca que pode ou não permanecer, pode ou não ser retida. Pois, ser afetado não é só ser passivo.



No momento em que, aos poucos, retomamos as atividades presenciais, ainda que de modo híbrido, iremos nos deparar com reencontros e novos encontros interpessoais. Mas, como serão ou estão sendo? Será que o excesso de tecnologia nos afetou a ponto de promover desencontros?

Sabemos que o mal não está na tecnologia, mas o que fazemos com ela. Se durante esta pandemia a tecnologia contribuiu para a manutenção de relações, de empregos e de vidas, por outro lado, pode ter afetado a nossa sensibilidade, empatia e escuta.

Recentemente vivi uma situação curiosa, decidi sair de alguns grupos de um App para que eu pudesse priorizar a minha atenção para a minha família e trabalho. E, antes de sair, deixei mensagem justificando minha saída e me colocando à disposição no privado. Curioso, que após sair de alguns grupos, 4 pessoas enviaram mensagens para mim desejando boa sorte, etc… eu pude saber das mensagens, porque uma pessoa do grupo as enviou para mim. Esta situação me fez refletir sobre a atenção, escuta e afetos.

Escutar o outro exige atenção e implica ir além do que está sendo verbalizado, para o que está sendo expresso não apenas em palavras, mas pelo corpo, pelo tom de voz, pelo silêncio e por outros sinais.

Onde estamos colocando nossa atenção, nossa escuta e nossos afetos? A culpa não é da tecnologia, pois muitos benefícios ela nos trouxe neste período, como por exemplo, o crescimento exponencial dos atendimentos psicológicos on-line, que contribuíram e contribuem para a prevenção e promoção da saúde mental, inclusive no trabalho.  

Segundo Dunker, todos nós temos uma potência escutativa, que nossa escuta pode ser aprendida. Mas, questiona: como a gente escuta os afetos? Pois, falar sobre os afetos é pensar nas relações intersubjetivas. Os afetos definem-se pela nossa capacidade de afecção, nossa capacidade de receber. O afeto é nossa capacidade de ser afetado, deixa uma marca que pode ou não permanecer, pode ou não ser retida. Ser afetado não é só ser passivo.

E, Dunker acrescenta que a escuta é algo diferente do mero ouvir, muito menos a aceitação incondicional do que o outro diz. É uma pequena viagem, um circuito… um poderoso agente sobre o sofrimento humano. A escuta é transformativa, restaurativa, o que se diz a partir do que se escuta.

A respeito do sofrimento humano, vivemos momentos desafiadores. E, no Brasil temos uma realidade preocupante com 108.263 benefícios (auxílio doença) concedidos por incapacidade temporária para trabalhadores com transtornos mentais e comportamentais, nos primeiros sete meses deste ano (Ministério do Trabalho e Previdência para G1 Economia, 16/10/21).

Diante deste cenário, a escuta e a qualidade dos afetos nas relações interpessoais serão essenciais, principalmente, no mundo do trabalho. E, vale a pena citar a inspiradora Psiquiatra Nise Silveira: “o que cura é o contato afetivo de uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”.

Dunker nos diz que a escuta está orientada para o sofrimento, porque o sofrimento deve ser reconhecido pelo sujeito e pelo outro e que precisamos mudar o entendimento mais básico para a saúde mental, que antes dos sintomas, precisamos olhar os estados de sofrimentos, mal nomeados, mal tratados, mal reconhecidos, o que falta para bem trata-lo é escuta. A escuta como uma prática.

Ao retornarmos para as atividades presenciais, importante lembrarmos que, nestes últimos meses, vivenciamos momentos que nos afetaram, nos marcaram e nos transformaram. E, que a atenção, a comunicação e a escuta serão importantes recursos para nos afetarmos positivamente e nos reconectarmos ao invés de ficarmos isolados, apesar de estarmos juntos. Pois, como nos lembra Dunker “[…]onde há solidão, há uma palavra que não consegue se articular em direção ao outro”

Para os encontros presenciais ou on-lines, desejo que prevaleçam as conexões humanas permeadas de muito afeto positivo! Fiquem bem!

*Ana Silvia Alves Borgo é Psicóloga Organizacional e do Trabalho (CRP 08/03162), Mestra em Administração (UTFPR), Didata da SBDG-RS. Há 33 anos atua na área de gestão, desenvolvimento humano e organizacional, e de saúde mental no trabalho.

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