Aos poucos a ideia de hibridismo vem ganhando importância, evocada pela imposição pandêmica de que nosso sistema educacional e trabalhista incluam dois tipos de experiência, uma presença efetiva e uma presença remota. A atualidade do conceito, contudo, pode nos oferecer uma oportunidade para pensar para além dos binarismos tão em voga e tão nefastos para a convivência humana. Isso significa que a hibridez pode ser uma característica útil para os indivíduos que querem aprender a conviver abrindo-se para a experiência com o outro. Em sentido ético, portanto, ser híbrido significa não retesar as ideias e impressões, nem calcificar os sentimentos a ponto de nos fecharmos para a alteridade. Híbrido, afinal, é o que está aberto para o que provém de outro lado e, mais do que isso, é capaz de integrar e deixar-se alterar pela experiência desse encontro.
A palavra, ao que consta, está ligada etimologicamente ao conceito grego hybris. Embora de difícil tradução, hybris lembra uma mistura que viola as leis naturais, sendo associada a um excesso e mesmo a um ultraje. É a desmedida que leva o ser humano a ultrapassar as fronteiras e as interdições para alcançar aquilo que é do âmbito divino ou sagrado e, sendo assim, merece punição. A história, por isso, teve horror ao que é híbrido. A busca pela pureza denunciou as misturas como perigos, anomalias e aberrações. As lições da metafísica, ao longo dos tempos, indicaram que uma coisa nunca vem do seu contrário. E que, se viesse, não seria bem-vinda. Não por acaso, Nietzsche, o mais anti-metafísico dos filósofos, inicia o seu livro Humano, demasiado humano recusando esse pensamento de opostos e festejando a “química dos conceitos e sentimentos” – precisamente a química, essa ciência das misturas! Falar das coisas humanas, afinal, exige o reconhecimento desse mundo das combinações e dos compostos, das fusões e dos cruzamentos que formam o que pensamos, sentimos e fazemos. O ser humano é sobretudo um ser híbrido – e isso também inclui alguns excessos, para os quais a ética deve estar a postos para compensar com reflexão o que o desequilíbrio provoca com abuso e despropósito.
Aprendi o valor dessas coisas desde criança, com as experiências de enxerto de plantas coordenadas pelo meu pai. Sempre me pareceu incrível que uma planta pudesse ser cortada e, depois de inserida naquela cesura uma parte de outra planta, tudo se condensasse perfeitamente, de forma que diferentes flores e frutos pudessem emergir em novas variedade. A genética é nossa primeira experiência de hibridismo, realizada no cruzamento de “progenitores” de diferentes linhagens, variedades, espécies ou mesmo gêneros. Mais tarde entendi que esse era o princípio que fundava grande parte das palavras, construídas a partir de enxertos de línguas diferentes. A lição da genética e da linguística é a mesma: o diferente é assimilado e passa a fazer parte de um ser, de tal forma que pode mudar os seus produtos, os seus resultados, os seus frutos.
Do ponto de vista ético, note-se a mesma lógica: abrindo-se ao diferente, rompemos a pobreza do sentido único das coisas e a miséria de nossa própria individualidade. O resultado é que nossas ações podem resultar mais ricas e mais bonitas, como flores matizadas surgidas, com surpresa, de uma antiga planta monocromática. Tendo elementos diferentes na composição de nossas ideias, celebramos um novo arranjo, no qual aprendemos a acessar e integrar como nossas, verdades de outras pessoas. Esse é a lógica mais importante para romper com o individualismo e, sobretudo, com a discriminação e o preconceito, que são filhos do fechamento, do medo e da incapacidade de acolher as verdades das outras pessoas. Não por acaso, esse tem sido o paradigma da vítima: atirada à sua própria verdade, ela não é compreendida e, por efeito, segue rejeitada, sem que alguém possa sequer entendê-la. A pior vítima, afinal, é aquela que não tem o direito de falar de sua dor. Foi o que notou Albert Camus, ao escrever que as vítimas acabam por atingir “o extremo de sua desgraça” precisamente quando “elas entediam”. É esse tédio que impede a sociedade de se abrir para a sua verdade, que é sempre uma verdade enfadonha porque é sempre revestida da reivindicação própria do sofredor. Quando ninguém mais ouve ou se aproxima do outro porque o outro se torna um “chato”, é porque estamos no extremo da catástrofe da inadimplência, decorrente da incapacidade de continuarmos sonhando com um mundo comum – exigência final e incontornável de toda vida ética.
Como tudo o que é híbrido exige uma síntese, podemos afirmar que a ética demanda tal sinopse. É ela, a ética, que há de servir, aliás, de crivo contra as deturpações que podem nos alcançar: não se trata de aceitar tudo o que vem do outro; há coisas inegociáveis e, nesse caso, o outro é que deve se abrir ao que nós trazemos. Para isso nós precisamos do diálogo, tanto quanto aqueles enxertos botânicos do meu pai precisam de uma boa ferramenta. É no diálogo que aprendemos o que pode ou o que deve ser assumido como nosso e o que deve ser recusado. Eis a ambiguidade do hibridismo ético, que não é nada ingênuo, mas permanece atento e coerente com o bem comum.
Por vezes, esse encontro pode ser dolorido e podem ocorrer rejeições e desabonos. O que vem de fontes dessemelhantes, afinal, forja a luta contra o Narciso que habita em cada um de nós. A gente costuma “achar feio tudo o que não é espelho”, como cantou Caetano Veloso. Mas isso não é motivo para permanecermos em nossa penúria vangloriada. Pobre de mundo é quem permanece sentado sobre suas verdades, viseiras, freios e bridões. Para livrar-se disso, é preciso abrir os olhos e ver os outros, embora essa não seja uma tarefa simples. Mas é indispensável para que a nossa sociedade não se torne um cemitério, contando seus monólitos. Uma sociedade viva é uma sociedade aberta. Uma sociedade ética é uma sociedade cuja força está na acolhida, no respeito e na partilha.
*Jelson Oliveira é Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É autor de vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e de vários livros, além de colunista do Saúde Debate
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