Se a Covid-19 já causou danos a uma parcela enorme da população e ainda provocou uma mudança radical no dia a dia de praticamente todas as cidades do Brasil, o efeito em quem sofre de uma doença rara foi ainda mais avassalador. Esse grupo de portadores de doenças raras – composto de estimados 13 milhões de brasileiros –, que em sua maioria são condições crônicas, progressivas, degenerativas e incapacitantes, ainda sentiu o impacto da alteração em sua rotina, seja na compra de medicamentos e fórmulas alimentares especiais, na suspensão de tratamentos fisioterápicos, exames de acompanhamento e diagnóstico, consultas a especialistas e intervenções cirúrgicas.
Para que possamos contextualizar, atualmente, a Organização Mundial da Saúde estima que exista entre 6.000 e 8.000 doenças raras diagnosticadas. São consideradas órfãs ou raras aquelas enfermidades que afetam apenas uma pequena parte da população, variando entre 3,5 e 6% e cada país possui sua própria definição. Grande parte delas são genéticas, ou seja, estão presentes desde o nascimento ou se manifestam ao longo de toda a vida, quando os sintomas aparecem tardiamente.
A situação é mais complicada ainda se analisarmos o grupo acometido por essas doenças. No Brasil, não há um órgão ou instituição que controle esses números, mas estima-se que 75% sejam crianças, o que ocasiona em uma necessidade maior de tratamentos e cuidados especiais para diminuir os efeitos incapacitantes e melhorar a qualidade de vida do paciente. Com o fechamento do comércio e o risco eminente de morte, as famílias, obrigadas a se trancar dentro de casa, encontraram dificuldade, ou até mesmo tiveram que abrir mão, de manter a rotina atarefada e repleta de terapias, visitas a médicos e aquisição de medicamentos específicos e alimentos especiais, em muitos casos indispensáveis.
A mudança na dieta, por mais simples que possa parecer, pode causar danos irreversíveis na saúde de uma pessoa com doença rara. Uma criança com Síndrome de Noonan, por exemplo, precisa fazer tratamento específico , principalmente quando jovem, para reverter o quadro de baixa estatura. A falta de acesso a esses recursos pode causar graves consequências e complicações para a vida toda. Outro ponto importante é que, com o foco e os recursos voltados para a Covid-19, os ensaios clínicos foram adiados ou interrompidos, ocasionando atraso na chegada de novos tratamentos. Os ensaios experimentais, muitas vezes, são a única esperança para melhoria da saúde e até mesmo sobrevivência. Por isso, digo que o vírus não afetou apenas aqueles que foram infectados, mas também outros grupos que não estavam debaixo “dos holofotes”.
O tema doenças raras é muito importante e precisa ser trazido para debate, já que estima-se que cerca de 30% das crianças nascidas com essa condição morrem antes mesmo de completar cinco anos de idade. Outro ponto que precisa ser levado em consideração é que, por serem em sua maioria doenças genéticas, os exames para diagnóstico não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, há uma proposta na Câmara dos Deputados para ampliar a triagem neonatal, o “teste do pezinho”, que passaria a detectar pelo SUS mais de 50 doenças raras e não apenas seis, como acontece hoje em dia. Embora esta ampliação seja uma iniciativa muito esperada, sua implantação deve acompanhar a evolução tecnológica e o preparo da rede de assistência para acolher os pacientes. Há ainda um novo teste sendo lançado no mercado, na rede privada, que terá capacidade para detectar até 300 enfermidades.
Entretanto, muitas outras doenças raras não são diagnosticadas pela triagem neonatal e precisam de centros de referência e de exames especializados para seu diagnóstico precoce, que também não estão disponíveis em sua plenitude pela rede pública. A medicina avança em passos largos, mas a assistência social e pública, assim como a conscientização sobre o tema, não evoluem na mesma velocidade. Rara devia ser apenas a doença, e não a possibilidade de diagnosticá-la e tratá-la.
Neste momento, os números de mortos pela pandemia já são assustadores. Mas uma preocupação que não podemos descartar diz respeito às vítimas que ela fará provavelmente não agora, mas futuramente, em decorrência de uma mudança na rotina atual. Os números consolidados vão demorar para aparecer. Tomara que a atenção à essas pessoas, não.
* Armando A. Fonseca é Diretor Médico-Científico de Medicina Personalizada do Grupo Pardini, empresa do setor de Medicina Diagnóstica e Personalizada
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