O pensador norte-americano Murray Bookchin (1921-2006), um dos pioneiros nos estudos da ecologia social e do planejamento urbano inspirado em ideias anarquistas e ecológicas, chamou atenção para o fato de que o problema ambiental deveria ser enfrentado por meio de um novo tipo (mais radical) de democracia. Esse modelo deveria partir, segundo ele, do reconhecimento de “comunidades orgânicas” que estivessem diretamente ligadas à natureza e em perfeito equilíbrio com ela. As ecocomunidades seriam lugares de vida integradas ao ambiente geral e aos ciclos da natureza, capazes de articular a experiência social a partir de uma nova relação com o lugar e o papel de cada indivíduo no seu território.
No seu último livro, Onde aterrar, o filósofo francês Bruno Latour recorre ao problema do território para formular o desafio ambiental do nosso tempo a partir de uma nova relação da comunidade com sua terra. Ao propor a substituição do próprio conceito de “humano” pelo de “terrano”, para acentuar o compromisso com a Terra como vínculo principal que inclui todos os co-habitantes do planeta, Latour acentua a necessidade do reconhecimento do papel central das comunidades locais para a preservação do futuro da humanidade.
Embora partilhem bases teóricas e visões políticas distintas, esses dois autores evocam um princípio segundo o qual a saída para a questão ecológica está numa capacidade nova no campo da política, algo que recusaria o mero olhar globalizante que simplifica e apaga as responsabilidades locais em nome do usufruto e da exploração desmedida dos territórios. Ao invés dessa abstração territorial, seria preciso reconhecer as experiências existenciais daqueles que constroem suas identidades em harmonia com a preservação do meio ambiente no qual estão inseridos e do qual sentem-se interdependentes.
A descentralização das decisões políticas passa, necessariamente, pelo direito dessas ecocomunidades de participar do gerenciamento da vida social, da distribuição de seus bens, do acesso a seus instrumentos de poder, do reconhecimento de seus costumes e tradições e, sobretudo, da inserção de seus interesses e dos interesses da natureza em geral nas escolhas sociais e nas deliberações econômicas e ecológicas.
As ecocomunidades, portanto, devem ser ouvidas e participar ativamente da vida democrática, contribuindo diretamente na formulação das leis e dos ordenamentos cujos impactos serão, na maior parte das vezes, sofridos por elas (primeiro) e por todos (depois). Comunidades indígenas e quilombolas, ribeirinhos e povos da floresta, moradores de vales e bacias hidrográficas, quebradeiras de coco de babaçu, castanheiras e pescadores artesanais: todas essas comunidades, cuja relação é de respeitosa dependência com o meio-ambiente ao seu redor, devem ser ouvidas e promovidas e suas opiniões e saberes valorizados, como espólio cultural capaz de contribuir para que a crise ecológica, que nos afeta com a evidência catastrófica das mudanças climáticas e da extinção da vida em larga escala, seja enfrentada. Cabe aos governos, mais do que nunca e ao invés do que está sendo feito nesse momento, construir espaços de exercício democrático que viabilizem o protagonismo, valorizem a experiência e incentivem as práticas dessas comunidades.
A crise ecológica só poderá ser enfrentada seriamente quando os interesses da sociedade de consumo, ávida pelas benesses do progresso cujos resultados têm levado ao crescimento da desigualdade e à injustiça climática, cederem lugar ao bem comum que, nesse caso, cada vez mais, é o bem da natureza, o bem das espécies vivas, com as quais a humanidade partilha o mundo. Por conhecerem e conviverem harmoniosamente com seus ecossistemas, as ecocomunidades têm muito a ensinar a todos nós. Já passou da hora de ouvirmos o que elas têm a dizer.
Confira aqui outras colunas de Jelson Oliveira
<
p class=”ql-align-justify”>Conheça também os demais colunistas do portal Saúde Debate. Acesse aqui