Compreendemos que o contexto atual vem trazendo modificações no atendimento a saúde, gerando uma interrupção do cuidado das pessoas com doenças crônicas. Isso não é diferente em relação ao diabetes mellitus (DM) e as doenças dos pés. A necessidade de distanciamento/isolamento social se faz necessário, uma vez que ter diabetes é ser classificado como Grupo de Risco.
Então perguntamos: quais estratégias podemos utilizar para manter as orientações de redução de risco de contrair a Covid-19 nas pessoas com DM e com úlceras nos pés, sendo que são pessoas que compõem o grupo de risco? O que podemos fazer para fornecer atendimento baseado em evidências com recursos físicos cada vez mais limitados?
Segundo o Conselho Nacional de Saúde (2020), a Covid-19 provoca impactos negativos na vida das pessoas com doenças crônicas, favorecendo diagnósticos tardios, em especial das complicações do DM, levando a uma subnotificação, uma dificuldade de acesso a medicações e insumos e, consequentemente, a uma desassistência.
Em um estudo realizado no Brasil, foi observado que apenas 21% das pessoas com DM que retiram medicamentos para controle da doença pelo SUS receberam por 90 dias; que mais da metade (58%) deixaram de obter as medicações; em torno de 40% das consultas ou exames foram cancelados e quase 80% das consultas estão aguardando remarcações. Em contrapartida, alguns estudos evidenciaram que apenas 0,2% das pessoas com DM estão controladas, sendo que uma hemoglobina glicada acima de 10% aumenta três vezes o risco de mortalidade pela COVID-19. A taxa de mortalidade nesse grupo está em torno de 31%.
É necessário manter as pessoas com DM em casa, longe de internação hospitalar. Dessa maneira, reduzimos o risco de contrair o coronavírus e aliviamos a pressão provocada pela pandemia no sistema de saúde.
Qual a saída? Gerenciar as pessoas com DM que têm doenças nos pés.
Para o Consenso Internacional do Pé Diabético, as doenças dos pés ou pé diabético geram o aparecimento da úlcera que geralmente ocorre pela combinação de dois ou mais fatores, em que a neuropatia e a doença arterial periférica desempenham um papel central. Além desses dois componentes, há também a presença de deformidades, pois estas causam uma distribuição anormal da carga do pé, levando a modificações na biomecânica.
A tríade formada pela perda da sensibilidade protetora plantar, deformidade e limitação da mobilidade articular aumenta o estresse mecânico, criando um espessamento da pele (calos), com hemorragia subcutânea e ulceração que, associada ao processo de aterosclerose e infecção, aumenta o risco de amputação.
Diante desse contexto, quais as recomendações prioritárias para manter a pessoa com DM e úlcera do pé longe do hospital e da Covid-19?
1 – A maioria das pessoas com Doença do Pé diabético NÃO precisa ser hospitalizada
A hospitalização geralmente deve ser reservada para pessoas com infecção grave (isto é, manifestações sistêmicas, sugerindo possível sepse) que requer exames diagnósticos urgentes e avaliação cirúrgica, bem como antibióticos e tratamento de suporte.
Geralmente não é necessário hospitalização para: 1) avaliação inicial, incluindo a maioria dos casos de infecção e isquemia; 2) teste diagnóstico inicial (raios-X simples, exame de sangue, culturas); 3) antibioticoterapia para infecções leves ou moderadas (administração oral de agentes biodisponíveis são geralmente suficientes, inclusive para infecção óssea). É importante ressaltar que a não internação às vezes vai requerer uma clínica multidisciplinar ou ambulatórios de referência para lesões nos pés ou uma rede bem estabelecida de clínicos individuais.
2 – Faça a triagem o mais rápido possível
Essa triagem ajudará a classificar a gravidade da lesão, sendo que os que apresentarem alto risco para perda de membros (infecção grave ou isquemia grave) serão avaliados e com provável internação, mas com previsão de alta hospitalar assim que possível. Pacientes em ambiente pós-cirúrgico ou com gravidade moderada de risco para perda de membros (infecção ou isquemia) devem ser tratados em unidades ambulatoriais com planejamento precoce dos serviços de assistência domiciliar. Para pacientes com lesões de menor gravidade (sem infecção), é indicado organizar um acompanhamento por telemedicina/ telenfermagem com fotos e/ ou videochamada com seus cuidadores ou familiares. Ressaltamos a importância da atenção às medidas de Equipamentos de Proteção Individual ao adentrar, especialmente, no contexto domiciliar.
3 – Considere serviços alternativos
Para aqueles com doença do pé diabético com menor gravidade de perda de membros, considere serviços alternativos como ambulatórios, unidades de saúde; telemedicina/ telenfermagem ou visitas domiciliares.
Para considerar essas possibilidades de gerenciamento, quais seriam as condições que ameaçam o membro?
Podemos citar algumas condições mais relevantes: infecção grave (infecção associada a celulite, úlcera profunda com sinais de osteomielite, infecções de tecidos moles); sepse com sinais clínicos (confusão, sonolência, hipertermia, taquicardia), isquemia grave que necessite de revascularização ou amputação e isquemia aguda que desenvolve rapidamente um membro pálido, frio, sem pulso, doloroso e com sinais de parestesia ou paralisia.
As condições que podem ser gerenciadas por meio de telessaúde ou domicilio/clínica/unidade de saúde: úlceras não complicadas, não infectadas e não isquêmicas; úlceras com grau leve ou moderado de isquemia, úlceras com infecções leves e pé de Charcot.
Nesse processo se faz necessário dialogar com o sujeito e prepará-lo para o autocuidado. Pontos essenciais nesse diálogo: medidas de higiene e proteção em relação ao coronavírus; controle glicêmico; necessidade do uso de dispositivos de descarga ou calçados em casa; exercício diário e, acima de tudo, aprender a lidar com o medo.
A pandemia de Covid-19 está provocando mudanças significativas no sistema de saúde e interrompendo as melhores práticas para preservação de membros em pessoas com diabetes, deixando um grande número de pacientes sem cuidados. Ressaltamos que pessoas com diabetes e úlceras nos pés têm maior risco de infecções, hospitalização, amputações e morte.
Implementando o sistema de triagem para pé diabético, visitas domiciliares, visitas ao consultório com maior acuidade, atendimento por meio de tecnologias – telemedicina/telenfermagem e monitoramento remoto de pacientes é possível ajudar no gerenciamento dos casos de úlceras nos pés por diabetes, além de reduzir o risco de Covid-19.
O objetivo durante a pandemia é reduzir a carga no sistema de saúde, mantendo as pessoas com úlceras nos pés por diabetes seguros, funcionais e em casa.
* Profa Dra Roseanne Montargil Rocha é Enfermeira Estomaterapeuta e docente da Universidade estadual de Santa Cruz em Ilhéus (BA)
Referências
Rogers LC, Lavery LA, Joseph WS, Armstrong DG. All Feet On Deck. During the COVID-19 Pandemic: Preventing hospitalizations in an overburdened healthcare system, reducing amputation and death in people with diabetes [published online ahead of print, 2020 Mar 25]. J Am Podiatr Med Assoc. 2020;10.7547/20-051.doi:10.7547/20-051
Foot in Diabetes UK (FDUK). COVID-19 SITUATION v1.3 Lower Limb Amputation Prevention Guidance Diabetic Foot Journal 2020; 23; 2-2.
CONASS/CONASEMS. COVID-19. Guia Orientador para o enfrentamento da apndemia nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, maio 2020.
Programa de atualização de DM em tempos de COVID – ANAD 2020. Palestra de 01/08/2020, Hermelinda Pedroza.
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