Boris Johnson e a APS

O primeiro ministro britânico Boris Johnson foi acometido pelo coronavírus nas últimas semanas de março. Johnson, um dos maiores incentivadores e mentores da saída do Reino Unido da União Europeia – o Brexit, também é conhecido pela sua cabeleira branca sempre despenteada.

O hospital St. Thomas, onde ficou internado desde 05/04/2020, faz parte do NHS (National Health Service, sistema público gratuito de saúde britânico), isto é, trata-se de um hospital público. Quando saiu do hospital, em 12/04/2020, o primeiro ministro não deixou de agradecer a equipe de saúde que o atendeu, principalmente a dois enfermeiros (contraditoriamente ao discurso de Johnson, são trabalhadores estrangeiros, de Portugal e Nova Zelândia) atuantes na linha de frente na luta para vencer a pandemia.

Depois que li a notícia, lembrei-me que, em meados de década de 1980, o Brasil estava se libertando das amarras do golpe militar de 1964 e seu último general-presidente (1979-1985), João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), militar que devotava grande atenção aos equinos (“Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo”), sofreu um infarto em 09/1981, tendo ido a Cleveland, Ohio (USA) para tratar-se. Em 07/83 colocou duas pontes de safena também em Cleveland.

Não julgo se foi uma atitude certa ou errada, apenas constato que ir ao estrangeiro para tratamentos de saúde sempre foi atitude comum nas elites brasileiras de todos os tempos. Ainda hoje isso deve acontecer, mesmo com Sírio-Libanês, Albert Einstein e outros baluartes hospitalares do Brasil rico. Entretanto, é inevitável eu comparar com o Boris do Reino Unido, que ante a covid-19 internou-se num hospital público! Cada país tem ou teve o governante que merece …

O mais importante neste paralelo da História, é que no Reino Unido o sistema público de saúde é baseado no Primary Health Care – atenção primária à saúde na tradução do termo para o Brasil. Esse é o dado relevante. Como um primeiro ministro de uma nação poderosa utiliza o serviço público de saúde de seu país como se fosse um simples padeiro, por exemplo, morador de Londres? Certo que a maioria dos demais países europeus e da América encontram-se travando luta contra o coronavírus e, provavelmente, não teriam como atender estrangeiros. Mas não é o xis da questão; diz respeito a ser atendido em hospital público em vez de procurar guarida no serviço privado. Por quê? Não sabemos quais as particularidades do atendimento nem da gravidade do caso do primeiro ministro, a não ser o que foi noticiado na imprensa, mas ele foi atendido pelo NHS. E é isso deve ser guardado como fundamental, pois ao preferir a rede pública, Johnson corrobora o excelente atendimento que o NHS oferece à população. Tanto que agradeceu por ter a vida salva no St. Thomas do NHS!

Por volta de 2013, quando estávamos no planejamento do projeto de implantação do serviço de atenção primária na cooperativa de saúde em que trabalho, uma das entregas do cronograma era os indicadores de desempenho, esforço e resultado da APS. Depois da leitura da obra da dra. Barbara Starfield, comecei a vasculhar na web quais indicadores poderíamos ter como ponto de partida. Deparei-me com o site da NHS e dezenas, centenas de indicadores para APS. Aquele pessoal trabalhava mesmo, visando resultados cada vez mais positivos e que pudessem ser mensurados. Não é à toa que o Relatório Dawson teve origem naquela nação, o Reino Unido, pelas condições sanitárias, pela vontade de reformar o modelo, pelo acerto da implantação do modelo.

Infelizmente, no Brasil, ainda patinamos com o modelo APS, mesmo com exemplos fortes em países com menos desigualdades sociais. Continua forte a corrente contrária que imagina perder pacientes e, com isso, o resultado que vai para o cofre diminuir drasticamente. Além de modelos ditos “APS”, utilizados mais para barrar o acesso pleno das pessoas ao sistema de saúde para diminuição de custos, desvirtuando e atrapalhando a adoção na saúde suplementar de iniciativas mais sólidas de implantação da APS.

E o que Boris Johnson tem a ver com isso? Que o sistema público gratuito de saúde britânico, com mais de 70 anos de funcionamento, baseado em atenção primária à saúde, continua uma grande oportunidade de melhorar os resultados de saúde da população atendida, e que seus pilares continuam vivos neste período conturbado. Se não fosse isso, o premier britânico poderia ter ido se tratar em Cleveland, Ohio (USA).

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